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O Amuleto de Roberto Bolaño


Enquanto o mundo lá fora afogava-se, fechei-me no cubículo de minha casa onde os livros entornavam-se do chão até ao teto, o barulho ensurdecedor das vagas tremia nas paredes que se rachavam por todas as diagonais e por todos os recortes e, mesmo assim, a casa aguentava-se, como um monólito pré-histórico, um menir.

As ruas da cidade permaneceram submersas durante semanas e, enquanto a pouca comida e a pouca água aguentaram o meu corpo, os livros que retirava, um a um, despacharam as horas dos dias, despejadas para o passado pelas palavras dos que amo e pelas ações daqueles que acharam por bem escrever. Comecei pelo primeiro livro que me deram e percorri cronologicamente (a minha imaginação nunca foi tão boa como a daqueles que admirava) até quando pude, dei graças a cada partícula de pó acumulada nos volumes amontoados e respigados pela minha obsessão. Comecei pelas aves (que começo auspicioso, digo eu, voar com as asas catalogadas) e continuei me entretendo com as já antigas palavras de Homero, de Edith Hamilton, que o seguiu nos mitos e nos heróis e nos deuses, de Tolkien, que me lembro tão bem pelo filme mas, acima de tudo, pelas palavras.

Reli cada teia pendurada nos prédios de Nova Iorque, cada capa vermelha nos céus da cidade imaginada de Metrópolis, cada rua suja da gótica do homem de negro, do deus Byrne que de tantas e tantas páginas preencheu o vazio, do mestre Gaiman que com tantas e tantas palavras preencheu o nada.

No final ainda imaginei como seria bom o mundo literário ter nas suas prateleiras uma outra saga do Sandman escrita pelo Saramago, uma história dos múltiplos universos da DC pelo Pessoa ou 10 anos do Super-Homem escritos por Alan Moore.

O Amuleto de Bolaño é o meu primeiro livro deste autor. Conta a história da mãe de todos os poetas mexicanos, de como viveu fechada numa casa de banho da Faculdade de Filosofia e Letras da Cidade do México em 1968, de como nessa clausura reviveu o passado que aconteceu e o que não aconteceu, de como previu o que ainda iria viver ou do que ainda poderia viver, caso sobrevivesse. 

As Intermitências da Morte de José Saramago


“No dia seguinte ninguém morreu”. Assim começa, grande, maior que a vida, este romance do nosso Saramago. Começa com um estrondo e não com um murmúrio. E para estes grandes conceitos é necessário ser-se mais do que eles para os levar a bom porto, para os carregar por mais do que uma frase, mais do que uma página, mais do que um capítulo.

Saramago não é quem é, um dos maiores escritores portugueses de sempre, por acaso. Não o é porque de um dia para outro decidiu que escrever de forma desviada era uma opção estética que o elevaria ao panteão dos génios dos labirintos da língua escrita portuguesa. Ele é-o porque escreve maravilhosamente. A leitura escorre como água na garganta seca. Necessária. Natural.

Mas não basta escrever bem. Há que ter ideias, pensamentos, opiniões. É disso que um excelente escritor é também feito. De pontos de vista, de prismas que o fazem como pessoa, indivíduo, átomo único no universo. E Saramago explicita o seu de forma eloquente e directa, tecendo uma história, várias histórias, imiscuindo-as das suas opiniões, da sua visão sarcástica, velha, marcada do mundo, mas também de esperança, de luz, aquela ao fundo do túnel que nos faz desejar que os dias se transformem em anos e os anos em décadas e as décadas em séculos. Mas Mãe Gaea não nos deixa. E por isso tenho pena... Que ele e eu tenhamos que ir um dia. Ele porque não poderá escrever mais. Eu porque não poderei aprender mais.

A Morte deixou de trabalhar num país de 10 milhões de habitantes. O que acontece a seguir é a delícia do prisma e da pena de Saramago.