Visão do paraíso, Wonder Woman Earth One de Grant Morrison e Yannick Paquette

Não é surpresa para ninguém que lê este blog que uma das minhas personagens favoritas de toda a Banda Desenhada e mesmo da Literatura é a Diana de Themyscira, mais conhecida por todos como a Mulher-Maravilha, a mítica super-heroína da editora DC Comics, parte da santíssima trindade da BD dos EUA (os outros são Super-Homem e Batman, para quem ainda não sabe). Este longo amor começou em 1987 quando, na revista da editora brasileira Abril, Super-Homem n.º 39, era publicado o primeiro capítulo da história de George Pérez e Greg Potter que iria para sempre modificar a maior e melhor das heroínas. Com altos e baixos ao longo de 30 anos, este personagem tem permanecido no cume da minha preferência. 

Grant Morrison, escritor de origem escocesa, foi responsável pelas histórias que considero um dos pináculos do que a mitologia dos super-heróis, quando desregrada, quando deixada ao abandono da imaginação, é capaz: JLA. 

Yannick Paquette é um desenhista que, por acaso, já trabalhou com a Mulher-Maravilha no passado, e que recentemente tem desabrochado como um artesão da BD ao nível de pessoas que admiro como J.H. Williams III. 

Juntar estes três numa única história escusado será dizer que era mais que um sonho molhado. Era um oceano de expectativa. Que não foi de modo algum defraudada.

A versão de Diana que tem vingado na BD nos últimos anos, segundo Morrison, não é aquela que acha ser a versão moldada pelo criador da personagem, William Moulton Marston. Os artistas Azzarello e Chiang recentemente escreveram uma mulher guerreira capaz de exigir a paz sob o punho cerrado no cabo de uma espada. Essa versão passou, inclusive, para o grande ecrã e para o corpo da excelente Gal Gadot. Mas Marston sempre escreveu a sua Mulher-Maravilha como o apogeu do sexo feminino, não só na sua figura mas, acima de tudo, na capacidade de pacificação do mundo patriarcal (o do homem), bélico, beligerante e devassado por urgências violentas. Marston era um homem moldado por mulheres do início do século XX que foram parte participante e criadora do movimento sufragista nos EUA.  Inclusive casou com duas delas, com quem viveu num relação bígama consentida por todas as partes (sobre a vida de Marston e das suas mulheres queiram perder tempo neste longo e maravilhoso artigo). Era, portanto, a pessoa ideal para ser o criador de uma super-heroína num mundo literário que começava já a ser dominado pela testosterona. Infelizmente, morreu cedo (1947), e a sua Mulher-Maravilha depressa seria relegada para o plano de uma dedicada dona de casa e de secretária dos outros super-heróis (todos eles homens, claro). 

Morrison quis repescar esta criação original e deu-nos uma interpretação de Diana que, ao mesmo tempo, deve ao seu arquétipo original e reveste-o de novas pulsações, deste nosso mundo novo onde a mulher não é mais a figura de segundo plano que o homem a tinha forçado a ocupar. Diana é símbolo disso mas também de muito mais, neste maravilhosa história de Morrison e Paquette. Ela é também símbolo de união entre estes universos tão dispares e profundamente separados, o da masculinidade e da feminilidade. Pela força de carácter que demonstra e pelo seu nascimento, ela é uma força da natureza, um tufão que não pode sequer ser represado pelo paraíso (onde vive). Para Diana, a perfeição de 3000 anos de vida idílica não é suficiente, isto quando o sangue pulsa e arde pelo mundo de fora, esse ainda um poço de imperfeições, guerra e escravidão. A Mulher-Maravilha de Morrison está perto da perfeição. Ela é um olhar ainda inocente num mundo novo tão diferente do seu. Contudo, não se perde nele, antes o vergará à sua vontade, se preciso for.

Pelo que escrevo, devem ter percebido que adorei este Wonder Woman: Earth One e que mal posso esperar pelos dois capítulos que seguir-se-ão. Finalmente, não quero deixar de elogiar a decisão de assumir-se a bissexualidade das Amazonas e de Diana. Desde da década de 40 que já desconfiávamos. E também por transformar esta BD numa reflexão sobre a objectificação sexual e artística de que a Mulher tem sido alvo desde sempre e fazendo-o pela inversão dos papéis. Aplausos! A Mulher-Maravilha, símbolo da emancipação e culminar pop do movimento sufragista prova, pelas mãos de Morrison e Paquette, que é um arquétipo tão forte e (mais?) relevante que os seus companheiros da 9.ª Arte.

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