Primeiro: não é Super-Mulher. É Mulher-Maravilha! A
sério! Aparentemente, um nome é tão bom ou tão mau quanto o outro, mas o
original é Wonder Woman e, se o dicionário não me engana, Wonder traduz-se
como Maravilha e não Super, OK? Mas como raios é que uma má
tradução fica tanto tempo?
Segundo: Ainda estão interessados? Eu sei, eu sei. A Mulher-Maravilha
não é muito estimulante (hum, má escolha de palavras) num universo literário
geralmente direcionado para homens, não é testosterona aos saltos enquanto
esmurra discricionariamente o vilão du jour (às vezes ela também o faz).
É uma mulher, poderosa em mais sentidos do que um, algo mal visto numa arte
que, já aqui falei numa coluna anterior, inclina-se a enquadrar o género num de
dois prismas: femme fatale ou interesse romântico (este, muitas vezes,
indefeso). Tenho perfeita consciência que não é bem assim e não o é
(totalmente) há já muito tempo, mas ainda existem alguns exemplos sonantes.
Adiante!
O nome é Diana de Themyscira, princesa nascida numa ilha
inteiramente povoada por mulheres, as Amazonas da mitologia grega –
curiosamente, a ilha tem o epíteto de Ilha Paraíso. Exiladas pelo deuses
do panteão grego, depois de serem ludibriadas por servos do deus da guerra, Ares,
a cometer crimes atrozes, viveram durante milénios sob a égide da paz e de uma
missão, a de proteger o mundo de um mal inominável sepultado no submundo da
ilha de Themyscira. Ares, contudo, com o decorrer dos milénios e
o crescente domínio da guerra, desenvolve-se em poder e influência, obrigando à
escolha de uma mensageira da paz a ser enviada ao mundo patriarcal (o nome dado
pelas Amazonas ao nosso). Das suas fileiras e à revelia de uma mãe protetora,
emerge Diana, a primeira e única criança a nascer na ilha de Themyscira,
concebida imaculadamente através do barro moldado pela mãe nas praias da sua
terra e soprado à vida com dádivas dos deuses - uma melhor concepção ao estilo
de salvador-religioso é difícil. Diana vence um conjunto de provas e
viaja para o nosso mundo, onde enfrenta os desígnios de Ares e, através
mais da verdade e menos dos punhos, consegue prevalecer ao deus insano.
Vencida a prova, é escolhida pelos deuses e pelas Amazonas como embaixadora,
não apenas da sua terra natal mas acima de tudo da paz, mensagem esta que
prevalece sobre todas as demais tradições themyscirianas e que evoca os
textos e filosofias da cultura grega, da qual a sua é uma evolução (e não somos
todos nós, ocidentais, gregos?). Diana não é tanto uma super-heroína nos
moldes mais tradicionais, mas antes uma mensageira de fraternidade, democracia
e igualdade, alguém que escolhe a palavra e o diálogo ao invés do punho e da
violência. E ainda se perguntam porque tem tão pouca fama no universo dos
super-heróis.
Os leitores experimentados de BD reconhecem, nos dois parágrafos
anteriores, não a Mulher-Maravilha mas antes uma das suas versões, a
concebida por George Pérez, o desenhista/escritor a quem foi dada a
missão de reintroduzir o personagem já nos idos de 1986. Esta é a versão pela
qual conheci Diana e aquela que reconheço como a interpretação mais
interessante do mito. Acontece que o personagem é já bastante mais antigo,
tendo sido criada por William Moulton Marston em 1941 para a editora DC
Comics. Marston é também conhecido por ser o criador do polígrafo e
praticante de filosofias matrimoniais bastante liberais, mesmo para os dias de
hoje.
O paralelismo entre a vida do autor e o personagem que criou é
absolutamente delicioso. Passo a explicar e começo pelo segundo facto. Marston
era “casado” e vivia com duas mulheres, com quem alegadamente praticava bondage.
Muitas das primeiras histórias da Mulher-Maravilha continham várias
cenas em que ela era sensualmente amarrada e tal era a frequência que, às
tantas, o editor pediu para as minimizar. O primeiro facto, o de ter sido
criador do polígrafo, é também bastante interessante. Muitos sabem que a única
arma que Diana brande é um mero laço forjado por Hefaestus, um
dos deuses do panteão grego, e esse mesmo laço tem uma característica muito
particular: todos os a si amarrados são impelidos a dizer apenas a verdade
(outra vez uma alusão ao bondage). Autores mais tardios racionalizaram
que não era o laço que impelia as pessoas a dizer a verdade mas antes a própria
Diana, que usava o instrumento apenas como um canal da sua influência.
Inclusive, noutra evolução do personagem, John Byrne chegou a matar Diana e a ressuscitá-la como a Deusa da Verdade (ah, os fabulosos anos
90, onde todos os super-heróis morriam ou eram mortalmente aleijados).
Mas voltemos a Pérez! Nas mãos deste autor e durante cerca de 5 anos, Diana
foi mais do que a Deusa da Verdade, não tanto beligerante mas antes
pregadora, a voz de uma mulher belíssima mas inocente aos modos dos homens.
Ainda que aparentasse ser o cordeiro abandonado aos lobos, este era um cordeiro
com poderes doados pelos deuses e talentos forjados por uma personalidade pura
e desinteressada, conseguindo preservar a sua missão, mesmo que exposta às
contrariedades humanas. Conseguindo preservar a inspiração que criava no
coração do Homem, quer fosse ele humano ou sobre-humano. A princesa Diana de
Themyscira era realeza com o intuito de nos ensinar os valores da cultura
grega e da paz. Dificilmente, neste mundo em que vivemos, a sua natureza,
pureza e missão poderiam ser bem recebidos e interpretados. Dificilmente, num
mundo de cínicos e numa arte principalmente lida e criada por e para homens,
uma mulher bela, emocional e, ao mesmo tempo, racional, detentora da palavra e
da força do diálogo, poderia ser recebida sem preconceitos. E, à semelhança do Super-Homem,
acaba por não ser dos personagens de BD mais bem aceites. O que, a meu ver e
caso ainda não tenham percebido, é mesmo muita pena.
Numa interpretação mais recente, do escritor Brian Azzarello e
desenhista Cliff Chang, Diana é agora uma semideusa, filha de Zeus.
Esta evolução foi bastante contestada por alguns leitores de BD mas, se virmos
bem, estamos a falar de um dos mais conhecidos aspectos da mitologia grega. As
indiscrições de Zeus para com Hera, a sua mulher, são bastante
conhecidas, tendo originado outros semideuses como Héracles, Helena de Tróia
ou Perseu, ou tendo envolvido casos bastante conhecidos, como o de
Europa. Acho que esta é uma companhia que merece Diana.
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