"É místico" ou "Quando as duas sequelas dos Watchmen acabaram na mesma semana!"


Claro que não existiu misticismo nenhum. Mas que é uma coincidência, lá isso é. Eu sou dos que acha que os Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons não necessita de sequelas, prequelas ou paralelas. Não sabem o que são paralelas? Mal seria... acabei de inventar o termo. Imaginem que a DC decide fazer uma série onde vemos os eventos dos Watchmen pelos olhos do felino do Ozymandias? (acho que acabei de dar uma ideia à linha editorial infantil ou juvenil da DC. Será que posso cobrar qualquer coisa?). Bem... isso seria uma história paralela. Estão a ver? Catita, não?

Bem, estou a divagar. As duas sequelas são a BD Doomsday Clock, de Geoff Johns e Gary Frank, e a série de TV Watchmen, da HBO e da autoria de Damon Lindelof. A primeira começou há mais de dois anos, tendo acabado no passado dia 18 de Dezembro de 2019, e a segunda chegou ao final da 1.ª temporada dois dias antes. São duas obras completamente diferentes, mas ambas, dignas sucedâneas da série original (o Alan Moore já pode pôr-me um feitiço. Se amanhã acordar com cabeça de pastel de nata, já sabem).

Comecemos pela série de TV. Vou confessar algo desde já . A início estive reticente quanto ao caminho escolhido pelo escritor. O enfoque era no racismo nos EUA, negros vs. brancos, começando na década de 20 do século XX e transportando todas as tensões de centenas de anos para a mitologia criada por Moore e Gibbons. A BD nunca foi sobre esse tema e o meu lado "purista" ficou de pé atrás - que, confesso, nunca foi algo pelo qual sou caracterizado, mas, ainda assim, cedi a esse lado. Paulatinamente e episódio após episódio, o "puritanismo" foi dando lugar a espanto e, finalmente, a entusiasmo. Claro que foi quando a série embrenhou-se mais profundamente na história da BD que se deu essa mudança (e ela segue a BD e não a adaptação cinematográfica de Zack Snyder), mas, ao mesmo tempo, assumiu declaradamente a temática de racismo, revelando uma capacidade de auto-crítica e auto-análise que não só reflectem a História dos EUA, mas também o seu presente. O tema e a abordagem são sérios, complexos e adultos, usando a mitologia e (até mesmo) a linguagem de Moore, para nos apontar um espelho e permitir uma sessão de psicologia colectiva que parece tão relevante hoje como o era há 100 anos.

Lindelof recorre a uma técnica da qual abusava numa das suas séries mais conhecidas, Lost, a dos mistérios e eventos bizarros, mas, ao contrário desta, no final de Watchmen, todas essas estranhas narrativas e personagens são explicadas e incluídas num enredo estanque. Mas desenganem-se se acham que a série prefere enredo e personalidades, quando, na verdade, entra decididamente nos nossos tempos e no comentário a um mundo polarizado, perigosamente divergente mas, nem de longe nem de perto, agarrado a respostas simples ao estilo "lado direito/lado esquerdo". Watchmen, como qualquer boa peça de arte, prefere as dos múltiplos sentidos da Rosa dos Ventos. É, no que a mim diz respeito, uma das melhores séries de TV deste ano que acaba e, mesmo que não dure mais temporadas, foi uma mini-série perto da perfeição (o final, apesar de aberto, faz parte do tipo de aberto com que a série de BD também acabou).

Doomsday Clock é outro "bicho". Também se foca nos nossos tempos, nas já referidas tensões, mas bem diferentes das focadas na série de TV. Ao mesmo tempo, não deixa de ser uma BD passada no universo partilhado dos super-heróis da DC Comics e, como tal, uma história-evento que marca para sempre a linha temporal destes mundos imaginários. Geoff Johns começou a história em 2016, num especial chamado DC Rebirth, onde queria fazer regressar o sentido de esperança e maravilhamento aos supers da DC. O escritor tinha uma opinião em relação ao que aconteceu a estas personagens nos 30 anos que mediaram o fim dos Watchmen e hoje. Os super-heróis tinham perdido o seu lado inspirador. O Super-Homem, a maior personagem da DC, perdeu a sua relevância e, mais importante, a sua mensagem de inclusão e paz havia sido substituída pela limitada interpretação do negrume da obra de Moore e Gibbons. O cinismo de personagens como o Batman era a nova bitola dos supers e não a mão estendida da figura quase divina e paternal do Homem de Aço. É então que, no final desse especial de 2016, a "bomba é lançada": o Dr. Manhattan havia manipulado o tempo do Universo dos supers da DC. O que se seguiu foi, começando em Novembro de 2017, o confronto, mais filosófico que físico, entre estes dois seres divinos, num teatro de conflitos geopolíticos e sociais dos EUA e do Mundo deste século XXI. A premissa era ambiciosa e a forma perigosa: a sequela de uma das mais amadas e elogiadas obras da Literatura do século XX. 

Não tenhamos duvidas que se tratou (também) de uma exploração mercantilista, mas o produto final é exemplar. Uma carta de amor à DC e, principalmente, ao mundialmente conhecido Super-Homem. Johns não se afasta dos temas polarizantes, mas também não do lado mais geek, explorando, em toda a sua latitude e multitude, as personagens da DC, o seu passado, o seu futuro, a sua herança e o seu legado. É acompanhado pelo extraordinário trabalho de Gary Frank, que demonstra ser ainda melhor que Gibbons (mas Johns não é Moore, nem pretende ser, espero eu). Gary Frank é uma força da natureza e, com este DClock, um dos melhores a trabalhar na BD mundial. A sua capacidade de explorar emoções e momentos épicos, o seu realismo, a sua capacidade narrativa, são lições em como se faz boa BD.

Moore nunca ira ler estas duas sequelas - já ele o deixou claro, se não directa, pelo menos indirectamente -, mas elas são meritórias do trabalho máximo e insubstituível que é Watchmen. Imprescindíveis. 

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