No From Hell de Alan Moore e Eddie Campbell, o famoso Jack The Ripper é assombrado por uma visão enquanto esquarteja a última vítima. Um portal abre-se defronte de si mostrando imagens do século XX, um mundo tomado pela máquina, pelo progresso e pela luz. Jack fica com a certeza que a sua nobre missão daria lugar a uma era de maravilhas, que ele havia sido a parteira de um El Dorado. O personagem principal do único romance de Oscar Wilde, o titular Dorian Gray, é um animal do mesmo feitio sem, contudo, aperceber-se de que é o arauto, o precursor, de uma maravilhosa nova época. Uma época que não se cinge ao século XX mas também a este nosso XXI.
Este é um dos mais conhecidos, elogiados e estudados livros da literatura mundial, um dos tesouros que ficarão para a eternidade. Já não é a primeira vez que neste Blog tenho a audácia de imiscuir-me pelo campo da (Alta) Literatura, mas quero sossegar todos os que me lêem: não tenho intenção de fornecer-vos qualquer tipo de visão inovadora ou prisma singular sobre um livro que vale para lá de qualquer crítica e que já foi esquartejado (lá está esta palavra outra vez) vezes sem conta e por mentes mais experientes que a minha. Este é apenas o elogio particular a um livro que, sim, deveria ter lido mais cedo na vida e cuja descoberta cabe dentro do coloquial "mais vale tarde do que nunca". É caso para se dizer que os clássicos são clássicos por alguma razão.
Não me parece que uma história com mais de 100 anos caiba dentro da definição de spoiler. O enredo é bastante conhecido: um homem, Dorian Gray, possui um quadro que envelhece no seu lugar. Mas, por vezes, a mitologia em volta de uma obra muito conhecida parece se ater a determinados pormenores e esquecer outros. Este livro é um dos casos. O detalhe base do enredo é fantástico e original o suficiente para prender a admiração mesmo de quem nunca o tenha lido. A ponto de nos esquecermos de o folhear, pensando já conhecer tudo o que há para conhecer. Acontece que, por exemplo, o quadro escondido de Dorian Gray não assimila apenas as rugas que deveriam existir na face eternamente jovem do protagonista, mas também os pecados que vai somando na sua vida, desenhando não só uma figura idosa mas também hedionda, negra e odiosa. Arte mais realista que a vida. Um personagem esquecido (pelo menos por quem eu li ou ouvi acerca do assunto) é o delicioso Lord Henry, amigo de Dorian, reflexo da exuberante personalidade do autor da obra. Ele é uma espécie de Mefistófeles para o Fausto de Dorian, ao mesmo tempo que é uma voz cáustica, satírica e jocosa dotada de aforismos morais tão falaciosos que transformam-se em tangentes da verdade (ou pelo menos uma verdade). Ele é o arquétipo do façam como eu falo e não façam o que faço. Mas porque é ele o Diabo tentador de Dorian Gray? Na sequência inicial, quando o pintor, amigo de ambos e autor do famoso quadro, mostra a obra, Lord Henry pergunta a Dorian se este não gostaria de ser eternamente jovem como aquela sua representação iria sempre ser. O protagonista reconhece-se neste desejo e enceta um pacto informal, de que gostaria de ver o quadro envelhecer no seu lugar. Momentos antes, ambos tinham tido uma conversa que espelha a actual febre pela juventude, pela imortalidade da pele esticada, a única recompensa que merece ser conseguida. A influência da cativante personalidade e opiniões de Lord Henry inebriam Dorian a tal ponto que, sem pensar, acaba por fazer um pacto mefistofélico.
O livro é contado pela prosa florida, perfumada e exuberante de Wilde, toda ela cores garridas, excessos dos sentidos e do prazer físico e carnal. É um livro que, perdoem o cliché, foi, é e será sempre actual.
2 comentários:
Ém relação ao facto de apenas parte da história ser do conhecimento geral, acho que se aplica a todos os clássicos. Supostamente toda a gente conhece a história de "Romeu e Julieta" e o livro é tão mais. Fiquei logo surpreendido ao descobrir que metade da peça é uma comédia e só a 2º metade entra no campo da tragédia. Entre outros pormenores fascinantes. O cinema tb contribui para dar outras imagens das histórias, o Frankenstein de Shelley que existe no imaginário popular é o do filme.
Por isso, por muito que se pense conhecer uma história, a verdade é que até lê-la é falso. Ninguém no mundo que tenha lido Dorian Gray, se esquece de Lord Henry, por exemplo. Já agora Wilde costumava dizer:
“Basil Hallward is what I think I am: Lord Henry what the world thinks me: Dorian what I would like to be—in other ages, perhaps.”
Obrigado pelo comentário e pelas pensadas observações. É um grande livro que, mais do que merece, tem de ser lido. Não só para conhecer a verdadeira história para lá dos resumos mas, acima de tudo, porque é uma delícia de romance, enorme e essencial.
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