Nestes tempos difíceis, não acho descabido recordarmos-nos de momentos felizes. Principalmente os passados com outras pessoas. Mas, no que a mim diz respeito, também não parece mal recordar os de leitura, principalmente aqueles que envolvem a BD. Esta semana, falo de um segundo grande apontamento desta minha história com a nona arte: aquele no qual apaixonei-me pela Diana, Princesa e Embaixadora de Ilha de Themyscira, a Mulher-Maravilha. Tudo começou em setembro de 1987, quando li, na revista de formatinho da Editora Abril Super-Homem n.º 39, o primeiro capítulo do trabalho de George Pérez na personagem (com a ajuda de Len Wein, Greg Potter, Jenette Khan e Karen Berger). Foi a partir daqui que ela passou a ser a minha personagem favorita da BD e da ficção.



Já conhecia a Diana pela EBAL, outra saudosa editora brasileira de supers. Primeiro, numa revista de formato gigante onde ela enfrentava o Super-Homem, com o teatro da 2.ª Guerra Mundial como palco (mais à frente falarei dela). E depois em edições mais pequenas com os desenhos de José Delbo. Mas foi com esta interpretação de Pérez que aconteceu o deslumbre - já agora, é sempre bom saber que Len Wein, escritor da minha primeira BD da vida, do Homem-Aranha, também teve um contributo (haverá um terceiro, do qual falarei daqui a umas semanas).

Era impossível não ficar cativado pela interpretação estética de Pérez, que eu acompanhava já do Novos Titãs, da Crise, dos Vingadores. O seu desenho meticuloso, ao mesmo tempo real e fantástico, tão apropriado aos supers, estava a interpretar o lado mitológico e grego da Diana de uma forma que me era familiar e, acima de tudo, certeira. Eu acompanhava e lia, na minha infância, todos os livros que apanhava sobre os mitos gregos. A Mitologia de Edith Hamilton. Um delicioso livro com ilustrações do qual não me recordo o nome. A versão da Editora Europa-América d'A Ilíada. Todos ajudaram a formar o meu gosto e a minha visão de como deveriam ser interpretados. E Pérez parecia acertar em tudo. Os nomes dos deuses eram os gregos (e não romanos, como eram em interpretações anteriores da Diana). Os cabelos encaracolados e as roupas em folhos abundantes. A arquitectura certeira e estudada. O Olimpo, a morada dos deuses, era uma interpretação especialmente poderosa, impossível de descrever e obrigatória de ver. 

Ainda que toda a capacidade estética do seu talento fosse a mais inspirada, tudo cairia por terra se a história e as personagens fossem fracas. E é aí que reside a verdadeira força dos artistas que trabalharam na Mulher-Maravilha nesta época, e principalmente de Pérez. A Diana é inocente nos olhos e nos gestos, mas também nas palavras, na forma como absorve o Mundo Patriarcal, os nossos estranhos hábitos, a nossa tendência para a violência e para o ódio. Mas a MM não é um cordeiro desprotegido. Ela é um guerreiro exímio (o maior do mundo), que não se coíbe de matar os seus inimigos, se a palavra da diplomacia e da paz não funcionarem - e essa é sempre a primeira opção da heroína. A Diana de Pérez é feminista sem discursos panfletários. É-o nos pequenos actos de gentileza, partilha e bondade que estende a amigos e adversários.

Foi esta estranha combinação de mitologia, de bondade, de diplomacia, de guerreira e de beleza que fez apaixonar-me pela Diana. A MM de Pérez é um super sem muitos dos lugares-comum. É por isso que, finalmente, o mundo começa a tomar consciência das virtudes únicas da personagem. Mais vale tarde do que nunca.

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