Diz-se que o nosso verdadeiro eu é uma mistura do que nós pensamos de nós mesmos, do que os outros pensam de nós e do que nós pensamos que os outros pensam de nós. Eu prefiro as coisas ditas de outra forma. Que a verdade sobre o que nós somos está escondida por detrás de histórias: daquelas que nós contamos sobre nós mesmos; as histórias que os outros contam de nós; e, quem sabe, as histórias que construímos para satisfazer as outras histórias que contam sobre nós. Não possuímos uma memória infalível e nem sempre contamos a verdade. Os outros não conhecem cada pormenor da nossa experiência. Na lenta construção dessa "mentira" vai sendo contada uma História que acaba por solidificar-se na nossa vida passada e no nosso destino. Os gregos chamavam-lhe tragédia. Essa palavra acabou por evoluir para vários significados mas que sumarizam a existência de um caminho que parece traçado deste que nascemos.
Os três actos de The Fade Out, continuação da já longa colaboração entre o escritor Ed Brubaker e o desenhador Sean Philips (juntos fizeram Seeker, Criminal, Fatale, et al), falam de histórias e de como elas acabam por tomar controlo da realidade, acabam por transformar-se na verdade. Sabemos que isso não é novidade, que a História é contada pelos vencedores, que por mais que queiramos perceber o que realmente ocorreu nada nunca será claro. O que é maravilhoso neste The Fade Out é a forma como Brubaker e Philips (perdoem-me o trocadilho) contam a história. Retrocedem no tempo, para uma época talhada à sua sensibilidade, os anos 40, os anos do noir, e deslocam-se no espaço para a industria do Cinema de Hollywood, para a sua Era de Ouro, a de Bogart, a de Bacall, a de Gable. Os protagonistas são dois homens, ambos escritores, uma actriz assassinada, uma outra actriz bem viva e um conjunto de figuras e personagens da industria que tentam construir uma mentira que ofusque a verdadeira face de uma arte que, na realidade, não existe. Quer dizer, o produto final, o filme, ele existe e é perene, mas para que se forme no ecrã é necessário construir toda uma tapeçaria de imagens e histórias falsas para que a ilusão, a magia e a eternidade do Cinema construam-se. Mentiras sobre mentiras sobre mentiras. Ou melhor, a verdade que fica.
Brubaker e Philips constroem um labirinto, este não em Creta mas em Hollywood, onde o Minotauro dificilmente é descoberto e onde o fio de Ariadne seria a verdade mas não existe. Uma das melhores colaborações entre ambos, mesmo depois de tantas e tão boas. Uma história sobre histórias, de como um país, uma civilização, ergue a infraestrutura da sua História numa cama de histórias que nada correspondem à verdade. Um belíssimo livro em três actos.
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