Dizem que o tempo é o melhor dos juízes. Que a História é o teste
final à longevidade e à relevância. Pelo menos assim o esperam George W.
Bush e Miguel Relvas.
O século XX foi pródigo no milagre da multiplicação. As Artes nunca
viram tanta quantidade de novos livros, novos personagens, novos poemas, novas
ilustrações, novas músicas. Propagaram-se como vírus, influenciando-se
mutuamente, disseminando-se à velocidade da democracia, da liberdade de
expressão e da tecnologia, a um nível inaudito na História da humanidade. Este
século foi palco não só do nascimento mas também da disseminação de novas
formas de Arte, dentre as quais também a Banda Desenhada. Nesta, um dos seus
mais famosos e perenes filhos é o Super-Homem.
Todos já ouvimos falar do nome, todos temos uma ideia do que ele é
capaz, de quem é, de onde veio e do que representa. De uma forma mais ou menos
definida conceptualizámos que se trata de um homem puro, bom, um ideal a
atingir. O verdadeiro e arquetípico super-herói. Por vezes, a imagem que
construímos acabou, com o passar das décadas, por funcionar em detrimento da
sua relevância. Consideramo-lo bacoco, antiquado, canastrão. Por causa da sua
percebida simplicidade ideológica, uma inocência não tanto infantil mas
comportamental, colocamo-lo de lado como algo simplório, intelectualmente pouco
mais estimulante que as revistas cor-de-rosa.
O Super-Homem nasceu numa altura, pouco antes da segunda guerra mundial
e na América do pós-depressão, em que eram necessários modelos de sobriedade e
pureza, em que se acreditava nas instituições democráticas e governamentais.
Anos mais tarde, a América e o mundo após as décadas de 60 e 70 deixaram de ver
os seus representantes e, por conseguinte, figuras tendencialmente paternais
como o Super-Homem, de forma positiva. O mundo não era taxativamente preto e
branco, movimentava-se antes numa paleta de cores diversa e complexa,
desatualizando figuras como o Homem de Aço. Mas, por detrás dessa imagem, está um
dos mais interessantes e expressivos mitos a surgir do espírito americano.
O que poucos se apercebem – nem mesmo muitos americanos - é que o
Super-Homem é os EUA tomando forma quase divina. Não tanto pelo lado das listas
vermelhas e das estrelas azuis, do patriotismo, mas antes pelo espírito de
democracia, de mundo novo e de liberdade individual. Joe Siegel e Joe
Shuster, ambos judeus, criaram a figura de um moderno Messias, mas também a
do derradeiro imigrante. Super-Homem, ou Kal-El, como é conhecido no seu
planeta natal, Krypton (repararam que o sufixo – el aparece
também no nome de muitos anjos?), chega às pradarias do Kansas, à
América profunda e rural, é criado por um casal simples, sal da terra, e
alimentado com os valores puros do trabalho agrícola. Clark Kent, o nome
de batismo “terrestre”, é a sua verdadeira identidade, não aquela do
sofisticado imigrante vindo de outro planeta, este asséptico e
ultra-desenvolvido. O Super-Homem representa a base sobre a qual todo o povo
americano foi crescendo (não esquecer que alien em inglês, tem duplo
significado: imigrante e alienígena). Vem de outro mundo, nascido com outro
nome, rebatizado e renascido em solo americano.
Muitos foram os autores que redesenharam o Super-Homem, mas nunca esquecendo
a essência do personagem. Agarram e desenvolveram décadas de histórias
acumuladas e criaram algo de novo mas, ao mesmo tempo, nostálgico. Sou da
opinião que apenas os personagens verdadeiramente intemporais conseguem
sobreviver a sucessivas reinterpretações. O Super-Homem é um deles.
No futuro próximo descrito na BD Kingdom Come, de Mark Waid
e Alex Ross, o Super-Homem submete-se ao exílio autoinfligido e decide
regressar ao simples trabalho da quinta de seus pais, numa alusão aos valores
basilares do personagem. Quando, numa história escrita por Joe Kelly, um inimigo do Homem de Aço extrai, da mente do
personagem, a imagem que associa a si mesmo, não é a de Kal-El que
aparece, nem a do uniforme de capa vermelha, mas antes a de um Clark Kent
camponês. Para estes autores, o Super-Homem é o Levin americano,
personagem da Anna Karenina de Tolstoi, que amava o trabalho
agrícola, participando, apesar de latifundiário, na labuta diária.
John Byrne, escritor e desenhista de BD, foi um dos muitos
que reinventaram o personagem. Em 1986, a editora decide atualizar a mitologia
do Homem de Aço, e este autor acabou por fazer mais do que simples operações
cosméticas. Deu uma nova vida e adaptou o mito, nunca se esquecendo dos
fundamentos. É dele a ideia que a herança terrestre do Super-Homem é mais
importante que a alienígena, que Clark Kent é mais importante que Kal-El.
Byrne transformou também Lex Luthor, o mais importante dos
antagonistas de Super-Homem, transformando o super-vilão com visões
grandiloquentes de conquista mundial num CEO de uma megacorporação de âmbito
internacional, um filantropo aos olhos da opinião pública, um sociopata egocêntrico
na realidade. E o Super-Homem, um ser quase divino capaz de extremos atos de
altruísmo, representava tudo aquilo que ele não conseguia ser. A complexidade
psicológica da motivação por detrás do vilão deixava de ser a clássica.
O escocês Grant Morrison é um dos melhores escritores do Homem
de Aço. São múltiplas as interpretações que fez do personagem, não só revelando
o amor que nutre pelo mesmo como também a intemporalidade que aqui tenho vindo
a mencionar. Falemos primeiro da mais recente das histórias de Morrison.
Em 2011 recupera uma variante quase marxista do mito, defensor dos
trabalhadores oprimidos pelo capital. Na realidade, Morrison
reinterpretou-o, adaptando-o ao zeitgeist internacional e recuperando
alguma das suas roupagens originais. Neste início do século XXI, o Super-Homem,
o maior dos super-heróis, só poderia estar do lado dos manifestantes de 15 de
Setembro em Portugal, dos ativistas norte-americanos que invadiram Wall
Street, dos grupos anti-troika que se proliferam em manifestações.
Ao contrário do lugar-comum que é associado ao personagem, a sua
humanidade, a posição que ganhou como habitante da terra, os valores que
adquiriu, são sempre as mais indeléveis das suas características.
Independentemente da escala do conflito em que está envolvido, dos deuses que
confronta, das batalhas cósmicas, no seu âmago, Super-Homem é Clark Kent,
o rapaz criado no Kansas rural. Não há ponta de arrogância, de deslumbramento,
e essa característica acaba por funcionar contra ele, levando a que muitos
leitores interpretem a sua humildade como um valor inatingível e inumano. Mas,
como Grant Morrison (outra vez ele) tão bem colocou no final de uma das
suas homenagens, a saga DC One Million, “este homem que
circum-navegou o universo, enfrentou deuses do mal, participou em batalhas que
nem imaginamos, … este… ser… algumas coisas são difíceis de colocar em
palavras…”. Enquanto o jovem Lanterna Verde diz estas palavras, vemos o
semblante do Homem de Aço a piscar o olho ao leitor, num misto de humanidade,
divindade e partilha. Este, sim, é o Super-Homem ou, pelo menos, o Super-Homem
de que gosto.
2 comentários:
Muito bom post SAM!
Uma das razões porque não é fácil escrever histórias deste super-herói é precisamente a grandiosidade da personagem. É difícil escrever algo com ele que não pareça paternalista ou inatingível. Felizmente alguns autores conseguiram-no...
Por alguma razão estas novas versões do Super são mais "dark", é sempre mais fácil escrever uma história com um personagem de várias camadas, e não simplesmente grandioso e radioso como o Super!
;)
É isso mesmo, Nuno. Felizmente que existem os talentosos e amantes do nosso Homem de Aço, que vão conseguindo a "proeza" de nos dar belíssimas histórias.
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