Os posts
Ler
(BD) sem medo dão-me um prazer muito particular. Primeiro: tento, de
uma forma modesta, dar a conhecer uma Arte que adoro. Segundo: tenho
oportunidade de folhear livros que amo, sentir o ar a movimentar-se com o
cheiro a papel enquanto passo para a página seguinte, entreter-me com as cores
garridas de personagens vestidos como se o Carnaval acontecesse todos os dias,
esquecer-me na vida colorida destes universos. Saber que um deus enlouquecido
quer desfazer o novelo da Vida é mais divertido que as últimas novidades do Orçamento de Estado. Estas são mais desesperantes.
Para vencer o deus louco basta pensar que o Super-Homem
vai, de uma forma ou de outra, perseverar. Já o Orçamento de Estado, temos de confiar nas instituições da realidade
e elas não são nenhum Super-Homem.
Recentemente, a Levoir lançou, junto com o jornal o Público, a famosa saga (para os fãs de BD, claro), Crise nas Terras Infinitas, que pode ser
considerada como um momento 0 no universo de super-heróis da DC. Literalmente,
a editora reformatou todo a sua mitologia de super-heróis e fez tabula rasa de grande parte do historial
dos vários personagens, dando oportunidade a diversos autores para os
reinterpretarem. Assim foi com o Super-Homem
(leia este post), o Batman e a Mulher-Maravilha (leia o artigo da Maxim), apenas para citar os três maiores ícones da editora.
Mas nada disto faz jus a Crise nas Terras Infinitas. Parece que vos estou a falar de um
expediente editorial carimbado e assinado por um gestor, cujo objectivo nada
mais era que simplificar processos, agilizar procedimentos e optimizar a capacidade
para contar histórias. Bem… também foi isso, mas existiu muita alma e coração (meu
deus, o que os gestores vão dizer de mim!) e estes devem-se exclusivamente ao
extraordinário trabalho de Marv Wolfman,
escritor, e George Pérez, o
desenhista que se tornou uma lenda com esta saga.
O Universo da DC estava bastante complicado,
isto segundo alguns mandachuvas da editora. Existiam inúmeras Terras a bailar
num caldo infinito composto por múltiplos universos, cada qual uma variação infinitesimal
ou gigantesca dos eventos e História da Terra que conhecemos. A esse caldo
deu-se o nome de Multiverso.
Existia a Terra-1, onde o Super-Homem, o Batman e a
Mulher-Maravilha de 1985 exerciam a
sua atividade (esta é a data da publicação da Crise), e cujas histórias vinham sendo contadas desde finais da
década de 50, princípios da de 60. Existia a Terra-2, onde habitavam as versões
originais dos heróis que o público conhecia de 30 e 40. Era desta Terra que provinha
o Super-Homem de 1938, o original
(vejam este artigo Maxim para saberem mais). Como devem calcular, estas Terras
eram as principais. Mas existia uma multitude de outras: Terra-3, uma terra
“invertida”, onde o Super-Homem, o Batman e a Mulher-Maravilha eram vilões e Lex
Luthor era o herói; Terra-X, onde os nazis haviam vencido a 2.ª Grande
Guerra e eram combatidos por um grupo de super-heróis apropriadamente
apelidados de Combatentes da Liberdade;
Terra-S, onde habitavam os personagens da Família
Marvel pertencentes à editora Fawcett,
adquirida pela DC numa disputa em tribunal;
Terra-4, na qual viviam personagens comprados pela DC à falida Charlston - como curiosidade, estes
personagens foram a inspiração de Alan
Moore e Dave Gibbons para criar
os Watchmen. E assim por diante!
Foi deste cenário que Wolfman e Pérez partiram
e foi-lhes encetada uma missão: construir uma única Terra. Das cinzas deste
imperativo editorial conseguiram erguer uma belíssima floresta, uma empolgante
e (sim) belíssima história que contou os derradeiros momentos do velho e o
nascimento do novo. Uma história do Bem puro contra o Mal absoluto e definitivo,
um Mal arrebatadoramente niilista, fanático da aniquilação da Vida, do Tempo e
do Espaço. O vilão era a corporização da crença no Nada. Nos escombros do seu
caminho restaria a agonia do silêncio absoluto e contra este ser hediondo sobravam
apenas os defensores do Bem, no sentido mais literal da palavra: o exército de
super-heróis do multiverso da DC, que abandonavam todos os seus desejos
egoístas e entregavam-se altruisticamente (muitas vezes ao custo da própria vida)
para a preservação de Tudo.
Raras foram as vezes em que, tão claramente e numa escala como a da Crise, todos os alicerces da Existência estiveram em perigo. Nada era sagrado. Todos os mundos, simultaneamente em todas as Eras e em todos os universos, estavam em risco. Milhões e milhões de universos cheios de vida pereceram com o avanço da arma derradeira do Inimigo, uma avassaladora onda de antimatéria. Os gritos de inúmeros seres vivos ecoaram na eternidade do espaço e do tempo quando pura e simplesmente… deixaram de existir. Desde o primeiro Homem das Cavernas até ao sofisticado Homem do Futuro, todos deixaram simultaneamente de Ser. O Vazio Final e Total. A Entropia.
Esta interpretação da realidade é curiosa. A
destruição ocorre simultaneamente em diferentes eras de um mesmo universo. O
Tempo é visto de forma não linear, ocorrendo todo ao mesmo tempo e no mesmo
“local” (a linguagem tem dificuldade em enquadrar este conceito). Vejam lá bem…
até nisto a BD oferece-nos vantagens. Desliga a o cérebro de noções lineares da
física, abre-nos para percepções desviantes do Real. Esta noção de tempo, que assume que todos os segundos, se assim quiserem, são "reais", que ocorrem todos ao mesmo tempo, por assim dizer, tem um nome, Eternalismo, uma corrente filosófica que vê todo o universo, na sua concepção espácio-temporal, como um único bloco.
No meio desta catástrofe são relatados contos de verdadeiro heroísmo. Os defensores da Terra sabem que são a última barreira contra o Nada Absoluto. Por sua vez, Wolfman e Pérez são os verdadeiros artesões deste sacrifício, os herdeiros de Heródoto que relatam uma Batalha das Termópilas à escala cosmogónica. A colaboração que estes dois criadores tinham aperfeiçoado nos Novos Titãs (o livro que os fez famosos o suficiente para herdarem a Crise) atinge níveis lendários nesta saga que marcou gerações e o panorama da BD americana. Não descurando o mérito de Wolfman e porque esta se trata de uma arte que mescla palavras e imagens, o contributo de Pérez não deve ser, de forma nenhuma, diminuído. Graças aos seus desenhos (extraordinariamente adaptados ao universo dos super-heróis), à sua capacidade de construir uma página, em suma, à sua habilidade de contar uma história usando como ferramenta a BD, a Crise nas Terras Infinitas pôde adquirir o status de que goza na biblioteca das grandes obras da 9.ª Arte. E nenhum desse status diminuiu de intensidade com o tempo. Independentemente das confusões que procurou resolver no universo da DC, de algumas destas terem entretanto voltado a acontecer e de serem necessárias outras Crises para as desfazer, o valor artístico da obra permanece inalterado. Não voltou a existir (na minha muito modesta opinião) evento tão verdadeiramente catastrófico e apocalíptico como este, onde heróis morreram, universos desapareceram, onde a realidade não saiu ilesa. E só por isso, esta saga tem um lugar no panteão das obras maiores da BD.
Estão suficientemente convencidos para lê-la?
Depois desta saga podem passar para o Man of Steel de John Byrne (que falei
neste post), para a Mulher-Maravilha
de George Pérez e para o Batman de Frank Miller e David Mazzuchelli.
Foi nestas histórias que as reinterpretações permitidas pela Crise aconteceram, reinterpretações
cheias de uma modernidade que, muito sinceramente, ainda não foi superada.
2 comentários:
Grande post SAM!
Esta saga teve momentos memoráveis, como a morte da Super Mulher e do Barry Allen, e foi na realidade muito bem construída. Podia ter caído na armadilha da confusão, mas os autores foram perspicaz e tal não aconteceu felizmente!
:)
Obrigado, Nuno.
É de facto daquelas histórias que me ficaram para posteridade.
Tive um enorme prazer em relê-la.
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