No longo e serpenteante caminho de um leitor de BD, passamos por muitos lugares diferentes, divergências que acabam por revelar-se surpreendentes. É o caso do Sandman de Neil Gaiman, um dos mais importantes marcos da minha história de ler BD. Foi um amigo da faculdade quem me convenceu a ler, em troca do X-Men: Age of Apocalypse. Dizer que este trabalho do escritor inglês foi uma revelação é um eufemismo parecido com dizer que Shakespeare é um excelente escritor de Teatro. Graças a esta descoberta, portas que já estavam entreabertas escancararam-se, a mais importante delas a da certeza de que a BD era muito mais do que entretenimento (e não seria mau se o fosse). Durante anos, Sandman foi mesmo a minha BD favorita e o volume Brief Lives o meu livro preferido da nona arte (que tenho assinado pelo Gaiman e pela Jill Thompson, a artista desse livro).
Sandman faz parte da DC Comics reinventada no pós-Crise nas Terras Infinitas e no auge daquilo que veio a ser conhecido como a "Invasão Britânica". Com vendas baixas, a DC tinha pouco a perder e decidiu arriscar, para muitas das suas personagens, uma abordagem mais adulta e "sofisticada". Já o tinha feito com o Swamp Thing de Alan Moore e Steve Bisette, com os Watchmen, também de Moore e Dave Gibbons, com Dark Knight Returns de Frank Miller, etc. Muitos destas autores foram "raptados" ao outro lado do oceano, muito graças a uma editora que iria se tornar lendária: Karen Berger. É ela uma das principais responsáveis pela tal invasão britânica de que vos falei, mas não a única. Também o foram Jennete Khan e Len Wein (sempre ele). Berger propôs a Gaiman reinventar uma personagem esquecida da DC, o Sandman de Jack Kirby, uma personagem baseada no Mundo dos Sonhos, mas ligada ao arquétipo dos super-heróis. Gaiman, com as suas influências e manias ligadas ao folclore, às mitologias do norte da Europa (e não só) e ao forte pendor literário, decide-se por algo completamente diferente. O titular Sandman seria, literalmente, a antropomorfização do Sonho, uma entidade primordial superior aos Deuses criadores (excepto O Primeiro) uma das entidades que abriu as portas ao universo. E começava a série capturado por humanos.
Esta era a premissa inicial. Devagar, Gaiman abriria e expandiria esta Mitologia, inserindo Morpheus (um dos muitos nomes de Sonho) numa família de sete, os Endless, cujos nomes, em inglês, começavam todos por D, e dos quais destaca-se uma das suas melhores criações, a interpretação da Morte (Death, em inglês, claro). Os habitantes do reino dos Sonhos multiplicavam-se e a história do seu Rei e Senhor complicava-se. Ao longo de 75 números (planeados), Gaiman forçaria viagens a esta personagem melancólica, taciturna e egoísta. Conheceria Lucífer Estrela-da-Manhã (que todos conhecem como o Diabo), que ensinaria ao protagonista (e a nós) umas das mais importantes lições de vida. Conheceríamos seres importais que habitam entre nós, vivendo vidas corriqueiras. Conheceríamos o pacto que Shakespeare fez com Morfeu, e do qual nasceriam duas das suas mais importantes obras: Sonho de Uma Noite de Verão e A Tempestade (esta seria o último capítulo da série, tal como tinha sido a última peça do bardo inglês).
Gaiman, ao longo da série, exibia não só uma imaginação prodigiosa, como brindar-nos-ia com diálogos e textos ricos, literários, de uma maturidade que raramente se lê em BD. Reler Sandman é (mesmo que não se goste) reconhecer valor e imortalidade no trabalho do escritor. A voz de Gaiman era inconfundível, no rococó linguístico, nas alegorias, nas metáforas e nos tiques estilísticos. Outro dos elementos que elevava Sandman era a capacidade de criar citações. Nada que se compare a "Ser ou não ser, eis a questão", mas que, nesta arte ainda tão recente, a tornava relevante e, mais importante, reconhecida. Não ficamos envergonhados se a citarmos. A universalidade é mais do que óbvia.
Em termos de artistas, se, a princípio, soluçava, com valores estilísticos que não se comparavam à articulação de Gaiman, depressa adquiriu a capacidade de atrair desenhadores perfeitos para cada novo enredo: Kelley Jones; a já referida Jill Thompson; P. Craig Russel; Shawn McManus; Charles Vess; Marc Hempell; etc. Todos contribuíram, com histórias que Gaiman adaptava a cada estilo de desenho, para um todo inesquecível.
Sandman continua a ser uma das minhas BDs favoritas - talvez já não a favorita, porque a idade ensina que o que interessa é a diversidade. Ainda hoje guardo memórias calorosas de o ler. Um dia terei de reler tudo de uma assentada, algo que não faço há quase três décadas.
Gaiman, ao longo da série, exibia não só uma imaginação prodigiosa, como brindar-nos-ia com diálogos e textos ricos, literários, de uma maturidade que raramente se lê em BD. Reler Sandman é (mesmo que não se goste) reconhecer valor e imortalidade no trabalho do escritor. A voz de Gaiman era inconfundível, no rococó linguístico, nas alegorias, nas metáforas e nos tiques estilísticos. Outro dos elementos que elevava Sandman era a capacidade de criar citações. Nada que se compare a "Ser ou não ser, eis a questão", mas que, nesta arte ainda tão recente, a tornava relevante e, mais importante, reconhecida. Não ficamos envergonhados se a citarmos. A universalidade é mais do que óbvia.
Em termos de artistas, se, a princípio, soluçava, com valores estilísticos que não se comparavam à articulação de Gaiman, depressa adquiriu a capacidade de atrair desenhadores perfeitos para cada novo enredo: Kelley Jones; a já referida Jill Thompson; P. Craig Russel; Shawn McManus; Charles Vess; Marc Hempell; etc. Todos contribuíram, com histórias que Gaiman adaptava a cada estilo de desenho, para um todo inesquecível.
Sandman continua a ser uma das minhas BDs favoritas - talvez já não a favorita, porque a idade ensina que o que interessa é a diversidade. Ainda hoje guardo memórias calorosas de o ler. Um dia terei de reler tudo de uma assentada, algo que não faço há quase três décadas.
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