Jeff Lemire e Andrea Sorrentino não são colaboradores nem recentes, nem raros. Conhecem-se de outras andanças, como a do Green Arrow e do Joker - Killer Smile para a DC Comics, ou do Old Man Logan para a Marvel, mas é aqui que colaboram, pela primeira vez, numa obra totalmente sua: Gideon Falls. Esta colaboração está a ser publicada pela editora Image, conhecida pelo apoio a projectos independentes e autorais, e, em Portugal, já foram publicados, pela GFloy, os dois primeiros livros, que coleccionam os onze fascículos de abertura da saga.


Existe uma cidade pequena nos EUA chamada Gideon Falls, onde um estranho celeiro negro é um enorme buraco na pacata realidade, e aqui chega o novo padre da paróquia, Fred. Existe um homem numa cidade grande que busca no lixo objectos estranhos, junta-os tentando perceber uma conspiração ininteligível. Estas duas linhas narrativas, aparentemente desconexas, ir-se-ão juntar de forma inesperada, pintando um quadro de mistério e horror digno de qualquer obra de Stephen King.

Lemire tem se pautado por histórias originais, arrastadas narrativamente pelo mistério, pelo inesperado, pela junção de elementos que parecem, ao mesmo tempo, familiares e alienígenas. A sua imaginação reside nesta terra desconhecida que habita os lugares-comuns, o que acaba por ser desconcertante e atraente - como naqueles filmes de terror onde uma personagem, contra todo o instinto de sobrevivência, insiste em abrir aquela porta. Gideon Falls desenvolve a sua narrativa de forma parcimoniosa mas volumosa, dando o suficiente para nos manter entusiasmados, mas não tanto que percebemos claramente o que está a ocorrer. Esta gestão é feita de maneira eloquente, nunca descurando as personagens em detrimento do enredo, mas quando o cerne da narrativa nos ataca, parece estarmos a ler um filho bastardo do 2001 e The Shining de Kubrick. Uma forma de horror primordial, porque balança entre o mais básico medo e o surrealismo que, juntos e orquestrados, casam tão bem.

Nada disto faria sentido sem o trabalho de um artista exímio que veiculasse a atmosfera que Lemire deseja. O italiano Sorrentino, com a sua invulgar e idiossincrática construção narrativa, é um achado e uma combinação perfeita para o enredo do escritor canadiano e, principalmente, para este Gideon Falls. Não só as suas personagens permanecem sob uma permanente sombra, como os eventos ocorrem sem aviso naqueles pequenos recortes dentro de quadradinhos que são a marca d'água de Sorrentino - como num filme de terror, onde o que conta é a surpresa. Ao mesmo tempo, existe minimalismo e gosto apurado nos enquadramentos, na mise en scéne e no design da página.

Lemire e Sorrentino trazem-nos uma BD que é uma das maiores vitórias recentes de ambos e um livro que supera todas as expectativas. Obrigatório ler. Em português de Portugal pela GFloy.

Sem comentários: