Filmes favoritos baseados em BDs (parte 1 de 2)

Esta é uma lista pessoal, como não poderia deixar de ser. Misturam-se inclinações, preferências, uma pitada de coração, algum cérebro e, acima de tudo, a vontade de os querer rever sempre. Seguem em baixo, por ordem alfabética.

Podem consultar aqui uma lista de todos os filmes, passados e futuros, baseados em BD. Escusado será dizer que vi apenas uma pequena parcela deles.

300 de Zack Snyder (2006)

Zack Snyder é um dos realizadores mais polarizadores para os fãs de BD. Existem os que odeiam o seu trabalho e outros (como eu) que gostam da forma com que trabalha personagens e livros da 9.ª Arte.
Sempre negro, é um cineasta com empenho na estética e na gestão do tempo cinemático como se de pinturas se tratassem. Por vezes, as alegorias e metáforas que evoca são demasiado óbvias, mas o peso simbólico que imprime carregam a mensagem de forma cativante, para os que gostam desse forma narrativa.

300 é a adaptação (literal) da BD homónima de Frank Miller. Um ano antes, Robert Rodriguez tinha escolhido passar para ecrã uma outra obra deste artista,  Sin City, copiando quadradinho a quadradinho, palavra a palavra, como se o material fonte se tratasse de uma peça de teatro. Snyder faz o mesmo, com liberdades artísticas e sem esquecer a interpretação idiossincrática que Miller fez desse momento histórico. Uma obra máscula, bélica, nada politicamente correcta, que tem envelhecido bem com o tempo.

Batman v Superman: The Dawn of Justice  de Zack Snyder (2016)

Começam a notar um padrão, certo? É da forma que os que odeia o realizador não prosseguem pela lista abaixo. 

Sem dúvida este é o filme mais polarizador da carreira de Snyder. É bom ou não é? É chato ou não é? É pedante ou não é? É negro? É deprimente? Considerei-o o melhor filme de 2016 e continuo sem arrependimento. Esta é uma obra adulta e complexa sobre super-heróis,  e, por isso, foi o flop que foi (se quase 900 milhões de dólares de receita podem ser considerados um flop). Ainda hoje gasta-se verborreia (como esta) a defende-lo ou a ostracizá-lo. Ao ponto de a versão da Liga da Justiça, que continuava o arco de história deste BvS, ter sido um produto do medo do estúdio, um meias tintas que agradou a ainda menos pessoas (não está nesta lista, para grande pena minha). 

BvS é ambicioso no alcance e na complexidade. É um filme que preocupa-se menos com a credibilidade e mais com o impacto narrativo, que é teatral, operático, maior que a vida. Não é somente uma obra de entretenimento, mas também um dos mais caros filmes independentes, disfarçado pelo uso de duas das maiores personagens da cultura pop do século XX. É uma reflexão sobre o papel do Batman e do Super-Homem como alegorias do mundo real.

Black Panther de Ryan Coogler (2018)

O universo cinematográfico da Marvel é um dos maiores casos de sucesso do cinema de sempre. Entretenimento puro e descomprometido, tem conseguido cativar diversas gerações e enaltecido as personagens desta editora de BD, ao ponto de terem passado a ser ícones pop equiparáveis a Star Wars e Senhor dos Anéis (talvez até maiores). Mas é com Black Panther que o estúdio atinge a maioridade, com um filme complexo, adulto e pertinente.

Em Black Panther não é só a personagem titular quem carrega a narrativa, mas também o antagonista, de motivações relacionáveis, os coadjuvantes, tão interessantes quanto o protagonista (alguns, principalmente as mulheres, até mais), e um enredo mais relevante que a maioria dos filmes da Marvel - que, sem critica nenhuma minha, inflectem mais para o divertimento que para a reflexão. Sem duvida e até agora o melhor filme desta produtora.


The Dark Knight de Christopher Nolan (2008)

Este filme é lendário por diversas razões, mas a principal é a interpretação postumamente oscarizada de Heath Leger, que criou o melhor Joker do Cinema. Contudo, no meio dessa prestação caótica e maravilhosa esconde-se um filme de autor, em que Nolan constrói, milimetricamente, um mundo obsessivo e obcecado. Um mundo onde o herói tenta libertar-se do caminho auto-infligido e que culmina em tragédia, no sentido mais grego do termo.

O Batman é aqui entendido numa dimensão de catarse e de pathos, uma personagem que se movimenta num mundo negro e inevitável. A dança dos honestos é tocada ao som do compasso dissonante do maravilhoso Joker de Ledger, uma figura maior que a vida que procura provar de que matéria a Humanidade é realmente feita. Este The Dark Knight é a prova do alcance literário da mitologia do super-herói, uma das mais subvalorizadas artes criadas na esteira do século XX.

Hellboy 1 e 2 de Guillermo Del Toro (2004 e 2008)


Dificilmente encontram nesta lista filmes onde a obra original e as inclinações pessoais do cineasta se misturem tanto. Del Toro é conhecido pelo pendor para a fantasia gótica na qual o Hellboy de Mike Mignola é uma das referências essenciais. A exploração de mitologias regionais, do folclore local, de mundos escondidos ao virar da esquina e ao abrir de uma porta. De monstros que estão prestes a saltar de cantos escuros. Tudo isso fazia parte da obra original do autor de BD e só poderia ser adaptado ao cinema pela mão do realizador mexicano, ao ponto de não percebermos onde começa um e acaba outro.

No primeiro Hellboy, Del Toro refreia-se e adapta de forma mais próxima a obra de Mignola, numa reverência mais do que merecida. O enredo segue de forma mais ou menos fiel o da BD, confiando na mitologia que está a trazer para o ecrã gigante. Prefere efeitos especiais práticos e menos CGI e transforma-o numa obra intemporal, de cenários e decórs sumptuosos mas terra-a-terra. A escolha de Ron Perlman como o protagonista é genial e o actor encarna a personagem de forma perfeita.

O segundo Hellboy é mais Del Toro. Tem um argumento original do realizador que reflecte de forma mais intensa as suas manias. É ainda mais sumptuoso visualmente, perde um pouco da identidade da obra da BD sem comprometer a qualidade.

Homem-Aranha 2 de Sam Raimi (2004)

Pode ser que o vossa interpretação favorita do Homem-Aranha seja a de Andrew Garfield (é a minha) ou a de Tom Holland. Pode ser que gostem mais da versão modernizada e tecnológica do Spider-Man Homecoming, com o fato do herói a parecer a armadura do Homem de Ferro. Pode ser que a vossa Tia May seja a de Sally Field ou a de Marisa Tomei (não tarda nada e terá 30 anos, ao invés dos originais 60 e muitos). Pode ser que eu esteja pura e simplesmente a ser um Velho do Restelo mas, para mim, o melhor filme do Homem-Aranha é este segundo realizado por Sam Raimi

Tobey Maguire e Kirsten Dunst não eram o casal com mais química da 7.ª Arte. Contudo, é no enredo e no argumento, na qualidade da leitura das personagens criadas por Stan Lee e Steve Ditko, que reside a mais valia deste segundo filme de Raimi, ele sim um cineasta que percebe quem pode ser o Homem-Aranha. Um herói com graves problemas financeiros, que, mesmo que inadvertidamente, magoa aqueles à sua volta (o seu sentido de responsabilidade civil vem sempre primeiro). Um herói que, a despeito de si mesmo, coloca-se no caminho do perigo contra adversários que, muitas vezes, são mais poderosos que ele. O Dr. Octopus de Alfred Molina desde cedo afirma-se como um dos mais complexos e reais vilões da história do cinema de super-heróis. E, finalmente e mais importante, este é um filme de realizador e não um anónimo produto de estúdio. Sam Raimi está em cada plano e em cada sequência - vejam a maravilhosa cena do despertar do Dr. Octopus na Sala de Cirurgia e lembrem-se de Evil Dead.

La Vie D'Àdéle: Chapitres 1 et 2 de Abdellatif Kechiche (2013)


Em cima falei de filme de autor. Dificilmente encontrarão neste lista um mais assumidamente autoral do que este. Abdellatif Kechiche adapta a obra Le bleu est une couleur chaude de Julie Maroh e transforma-a ao ponto de serem duas obras completamente diferentes. No ano de 2013 foi, incontestavelmente, o meu filme favorito.

As obsessões do cineasta são manifestadas de forma mais ou menos subtil. A divisão de classes, tema que já tinha abordado em L'Esquive e Le Graine et le Mollet, está incorporada nas personalidades das protagonistas, que, a despeito de uma selvagem química sexual, têm muito pouco em comum. Desde o primeiro momento, para os atentos, não existe nada em comum entre Àdéle e o objecto do seu desejo. Cada gosto é diferente ao ponto da ruptura. E nessa diferença mora a vida do autor, de ascendência Tunisina e emigrado para França aos seis anos. Uma vida vivida na margem e com os olhos postos numa França sócio-económica e culturalmente diferente da sua vivência.

Mas para além do autor, são Àdéle Exarchopoulos e Léa Seydoux, as actrizes, que se entregam ao limite da tortura - houveram sérias acusações de abusos por parte do realizador no método de filmagem de determinadas cenas, umas das quais a da intensa ruptura. Especificamente em relação à primeira, a câmara é obcecada com a figura da actriz e da personagem, que explora ao ponto do voyeurismo. O realizador muda o nome da personagem principal da BD e dá-lhe o mesmo que o da actriz. É impossível ver esta obra e não ficar maravilhado, apaixonado, com Àdéle Exarchopoulos. Sem dúvida, um dos grandes filmes (assim, sem mais classificações) do século XXI.

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