Rapidinhas de BD - Robôs também irão ser humanos: Vision e Battle Angel Alita: The Last Order vol. 1


(NOTA de blogger - Antes de mais nada, calma. Os puristas que se acalmem que eu sei que o Visão dos Vingadores da Marvel é um sintozóide e a Alita/Gally de Yukito Kishiro é uma ciborgue)

O que é ser humano? Esta pergunta parece fácil de responder. Para todos nós bastaria olhar para o espelho. Mas será suficiente? A Religião, a Filosofia, a Ciência e a Literatura todos os dias tentam responder. Elaborar e complexificar a resposta, a solução, a verdade. Mas ao virar da esquina está o advento da inteligência artificial (IA). O que acontecerá a partir daí? A resposta será assim tão menos complicada? Bastará continuar a olhar apenas para o espelho? Ou, seguindo a via cartesiana, bastará pensar para existir?

A Literatura primeiro e o Cinema depois têm sido profícuas em narrativas acerca de IA. Nomes como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Stanislaw Lem, Philip K. Dick, Stanley Kubrick, Ridley Scott, Alex Garland, Denis Villeneuve, etc, têm explorado de forma inventiva e filosófica as implicações do aparecimento do pensamento robótico. Como não poderia deixar de ser, a Banda Desenhada tem seguido um caminho similar, que oscila entre o existencial e o entretenimento ou, ainda, uma mistura dos dois. Eis então que surgem estes dois exemplares: Vision de Tom King Gabriel Hernandez Walta e Battle Angel Alita: The Last Order Omnibus vol. 1 de Yukito Kishiro

Visão é um sintozóide criado na década de 60 por Roy Thomas e John Buscema, sendo, a início, antagonista dos Vingadores, que acaba por transformar-se, logo na primeira história, num dos seus mais relevantes membros. Muitas das narrativas à sua volta tinham a ver com a óbvia dualidade de ser uma forma de vida artificial com pensamentos (e sentimentos) muito humanos. Nesse balançar, vários autores encontraram ouro para minar, resultando em variadíssimas histórias, dentre as quais uma delas resultava no casamento da personagem com a Feiticeira Escarlate, humana. Tom King vai mais longe e planta na alma cibernética do Visão a necessidade de ter uma vida ao estilo Norman Rockwell. Para isso cria uma família (já divorciado da Feiticeira - não vou elaborar porquê). O que segue é, nas mãos inspiradas de King, uma reflexão existencialista do que significa "ser um humano". O escritor recorre não tanto a solilóquios verborreicos (leia-se, a personagem falar pelos cotovelos de forma teatral), mas antes a pequenas acções, que somadas revelam a verdadeira alma das personagens. No início do quarto capítulo, por exemplo, possui um dos momentos mais belos da BD moderna, com uma subtil e arquitectada ligação entre uma conhecida cena da cultura popular, a revelação de personalidade das personagens e um comentário à pergunta maior desta obra. O final segue de forma brilhante os trâmites da tragédia clássica, escolhendo antes a inteligência e a emotividade do leitor para que ele descortine o climáx da história. Visão é uma das mais cativantes leituras dos últimos anos e um dos melhores livros que li na vida. Quase que afirmo que temos aqui os Watchmen da Marvel (em breve será editado em Portugal pela Goody).

Battle Angel Alita: The Last Order é a continuação da primeira "temporada" desta conhecida Mangá, marco da BD e do ciberpunk (já falei neste link da primeira temporada). Neste ano da adaptação para o Cinema nas mãos de James Cameron e Robert Rodriguez, decidi revisitar a leitura desta obra, que tinha iniciado na década de 90. The Last Order retoma onde a anterior história havia acabado e expande o universo e o alcance da mensagem de Gunnm (o nome original japonês da obra). Yukito Kishiro prova que, mesmo passados 20 anos, o mundo actual está ainda a apanhar a sua visão distópica e reflectida do mundo tecnológico que continua a ser construído. Os seus conceitos são tão poderosos que muitas obras ainda minam a inspiração que suscita (a recente série Carbono Alterado da Netflix parece dever também muito a Gunnm). No meio de vertiginosa e (muito) violenta acção, o autor japonês reflecte, uma vez mais, sobre o que significa essa coisa de ser um homem. Será o corpo ou a mente que nos torna mais reais? Será a combinação dos dois? Serão as nossas memórias? O verdadeiramente interessante é a assustadora previsão do que o futuro poderá ser, se não controlarmos o fascínio que temos pela tecnologia. No Japão, que está décadas à frente (para o bem e para o mal) em relação à prática destas questões, Gunnm tem a virtude da auto-análise. Para os restantes, é um conto que alerta para os dilemas que se avizinham.

As BD Vision e Battle Angel Alita, usando personagens robóticas, reflectem sobre a questão "o que é ser um humano?". Dificilmente irão encontrar melhor resposta a essa pergunta e, ainda por cima, em obras que escolhem focar-se na vida artificial (será assim tão artificial?).

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