Todos trememos quando soubemos que o clássico Blade Runner de Ridley Scott teria uma continuação, 35 anos depois e pelas mãos de um outro realizador, deste vez o Franco-Canadiano Denis Villeneuve. O primeiro faz parte da constelação dos filmes gigantes, um caso raro de confluência entre a crítica e os fãs. Adorado. Analisado. Um marco para uma geração e para a História do Cinema. Como podem calcular, as expectativas eram elevadas.
Blade Runner 2049 é muito mais que um digno sucessor do primeiro. Teremos de dar tempo para assentar mas o trabalho de Denis e do argumentista Hampton Fancher (peça essencial neste filme e que já tinha trabalhado no primeiro) é, pelo menos, tão bom quanto o clássico. A história não é um revisitar do que já antes tinha sido dito mas um evoluir e aprofundar, à luz deste mundo moderno de iPhones e de internet, de isolamento facilitado pela tecnologia, de mega-corporações monolíticas e predatórias. Neste mundo vagueia a personagem de Ryan Gosling, que tem aqui um dos mais interessantes papéis da sua vida (junto com Drive e Only God Forgives), na busca da sua identidade e de uma figura que é a peça central de todo o enredo (e que recuso-me a revelar quem é para que tenham a mesma surpresa que tive). Nessa demanda, vagueia pelas paisagens frias, chuvosas e distópicas da costa oeste dos EUA, que se transformou, ao longo dos anos, em algo ainda mais aterrador e desumano. As ruas são linhas intermináveis de prédios uniformes, à volta de outros edifícios, de linhas fascistas e imperiais, que erguem-se na paisagem como um Olimpo de Trevas.
O argumento centra-se nas personagens e na demanda e o cenário serve "apenas" como contexto. Ou melhor, como um mistério. O mundo é solidamente construído mas indagamos como se chegou ali, o que representa aquela desolação tão familiar. Essa familiaridade facilita a identificação da paisagem e da arquitectura mas, ao mesmo tempo, repugna-nos e assusta-nos. Este mundo pode ser o nosso num futuro próximo.
À volta da busca que é o núcleo do argumento, outras buscas e outras personagens orbitam, como forma de sublinhar a principal. Uma das mais interessantes é a história de amor da personagem de Ryan Gosling, que nos proporciona momentos antológicos e que ficarão para a História do Cinema. Existe uma veracidade irónica nesta paixão que eleva os outros elementos do filme. É muito mais que uma nota de pé de página. É o coração de Blade Runner 2049.
Villeneuve tem uma visão mais fria e kubrickiana que Ridley Scott. A limpeza de alguns espaços, a posição das personagens, as cores primais e uniformes, o tempo frio de espera, contribuem para uma atmosfera tenebrosa e grávida de tragédia. Estamos sempre à espera da queda da espada. De forma paradoxal, permanecemos longe e perto deste mundo, um conflito entre a emoção e o coração. O trabalho deste realizador continua a ser um dos mais interessantes da actualidade da 7.ª Arte, depois de Arrival, Selvagens ou O Homem Duplicado (filme inspirado no livro do nosso Saramago).
Cada actor é escolhido de forma exemplar, desde a interessantíssima Ana de Armas (que já tinha visto em Knock Knock), passando pelo temível Jared Leto, a sempre maravilhosa Robin Wright e o regresso do ícone Harrison Ford. Cada contribui e engorda o peso da tragédia.
Blade Runner 2049 de Denis Villeneuve é um filme para ficar na História. A prova de que podemos voltar a visitar um clássico sem perder um átomo do que ganhamos com ele e, ainda mais raro, acrescentando ao original. Difícil, para mim, saber qual dos dois o melhor. É dar tempo ao tempo.
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