O que vou lendo! - Sharaz-De de Sergio Toppi e Diário do Meu Pai de Jiro Taniguchi


A memória é uma coisa estranha, maleável na sua construção, um amontoado de caos colado sem razão ou rima. A memória pode ser a de cada indivíduo, a pessoal, ou uma colectiva, parte da herança e código genético de um povo ou de toda a Humanidade. A nossa personalidade é também produto deste único e deste colectivo, é a construção sobre um edifício de vários andares, entre os quais o da memória. Que pode ser falsa e verdadeira. Porque existe sempre um lado de mentira na nossa memória. Aquilo que escolhemos esquecer é tão importante como aquilo que escolhemos recordar. Aquilo que nos deixam recordar é tão importante quanto aquilo que nos deixam esquecer. De uma forma ou de outra, estes dois maravilhosos livros falam-nos da memória. O de Jiro Taniguchi é mais directo na abordagem. O de Sergio Toppi mais tangencial. 

Taniguchi conta-nos do regresso de um pródigo filho à terra natal na sequência da morte do pai, a razão porque se havia ausentado durante mais de uma década. O ressentimento que sentia pela figura paterna depois do divórcio amontoou memórias em cima de memórias que construíram um distanciamento entre as duas figuras. É necessária a morte para que o filho, ouvindo outros que seguiram mais atentamente o pai, construa uma outra memória, mais afável, de uma figura que sempre aguardou nas sombras o crescimento de alguém que amava muito. A respiração pausada da narrativa simples mas forte deixa o leitor demorar-se com os personagens e com o enredo, absorvendo, nos pequenos nadas dos dias e dos anos, a memória de outros.  Leva-nos pela mão e com passos contemplativos a absorver as vivências de um povo tão diferente do nosso mas tão parecido. Bem vistas as coisas, de uma forma ou de outra, andamos sobre duas pernas e respiramos oxigénio. 

Sharaz-De de Toppi apela a uma memória colectiva, ao mesmo tempo estranha e familiar: a das histórias.  É a colecção de contos da famosa Mil e Uma Noites, os contos que Sherazade (aqui Sharaz-de) se viu forçada a revelar, noite após noite, para escapar à morte da manhã seguinte. Nenhuma das histórias é sequer das mais conhecidas (não há Sinbad,não há Ali Babá) mas todas são de uma extrema beleza, apelando ao mais básico sentido de maravilhamento. Somos crianças crescidas a folhear as extraordinárias páginas deste belíssimo livro, cada ilustração um quadro, cada quadro uma vinheta de Banda Desenhada que constrói um volume que nos deixa extasiados, sortudos por ter passado dedos e olhos pelas suas imagens e palavras. Gostava de ter arte e palavra, arte na palavra, para vos convencer que estive a ler um dos mais belos livros da minha vida, um elogio à capacidade de fantasia de um homem e da Banda Desenhada, que aqui é aproveitada no seu máximo potencial. Esta é, sem duvida, uma das leituras de que mais gostei em 2015. 

Ambos os livros fazem parte de uma colecção que acabou a semana passada e que saiu todas as quintas-feiras junto com o jornal o Público sob a chancela da editora Levoir. Foi uma das mais inspiradas colecções que poderiam ter saído. Esperemos que o futuro nos reserve mais destas pérolas.

2 comentários:

Nuno Amado disse...

Olá sam.
Concordo contigo perfeitamente, e espero que haja uma segunda série de uma colecção "Novela Gráfica".
;)

SAM disse...

Nuno, vamos rezar para que sim. Que grande coleção esta.