Lone Wolf & Cub de Kazuo Koike e Goseki Kojima foi daquelas BDs (ou Mangá, se preferirem serem específicos) das quais fui ouvindo falar aos poucos e poucos, como uma música que começa baixinho, até ascender a um apogeu sonoro. Entre ouvir falar dela pela primeira vez e lê-la de cabo a rabo passaram-se 15 anos - isso graças ao limitado panorama editorial português da década de 80, quer em publicações traduzidas, quer em importação - pobre para mim, já que não era muito fã de franco-belgas (não era, agora já sou... não me crucifiquem!) e preferia americanos e, ainda não sabia, japoneses. 


Comecei a ouvir falar no mesmo sítio onde muitos ouviram falar: no Demolidor de Frank Miller. O autor dos EUA nunca escondeu ser fã de Lone Wolf, e de ter transportado a linguagem desta para as célebres sequências que coreografava no herói da Marvel. Da primeira vez que tentou-se a publicação nos EUA, pela First Comics, Miller agraciou as capas com o seu desenho - esta primeira tentativa cobriu apenas um terço da história. Esta edição chegou-me às mãos numa tradução do Brasil, pela editora Nova Sampa, mas a distribuição era irregular. Foi preciso esperar até o início do século XXI, para a editora Dark Horse publicar na íntegra a obra nipónica, em volumes de formato pequeno e de periodicidade mensal. Foram vinte e oito gloriosos meses.

Já se passaram duas décadas desde que a li, portanto têm de perdoar-me qualquer falha de memória. Mas, se os pormenores escapam, a sensação de êxtase está viva - e não é essa que conta? 

Organizada, como a maior parte dos Mangás, em pequenos capítulos de vinte e tal páginas, os autores concentravam o poder da mensagem na parcimónia das palavras, na riqueza da acção e na caracterização das personagens. Nenhum traço era desperdiçado. Cada linha de movimento era riscada com intenção. Os japoneses têm, no seu melhor, a capacidade de sintetizar, em poucas páginas, o que é a BD. Mensagem directa, sem rococó, capacidade de resumir o propósito da narrativa. Anos mais tarde, voltei a sentir isso no Monster de Urasawa, mas, sem ainda o perceber completamente, já o tinha notado aqui e no Gunnm (de que falei na semana passada). Nos melhores autores japoneses, a simplicidade do traço e a parcimónia das palavras não são a desculpa do mau artista, daquele que falha no desenho ou tem pouco a dizer: é exactamente o oposto. Se a BD pode ser vista como uma arte puramente visual (que, na minha opinião, não é), no Japão esta assumpção é levada ao extremo da perfeição. 

Desenganem-se se acham tratar-se de um Carnaval de imagens com pouco conteúdo temático. Lone Wolf & Cub é complexo e adulto na abordagem que faz de problemas intemporais, isto à luz do período Edo do Japão (1600-1868), um momento na História em que este conjunto de ilhas fechou-se ao mundo e eram governadas pela mão de ferro do Shogunato Tokugawa (aliás, os antagonistas desta obra). Os autores entrelaçam essa História ao conflito central que opõe as duas principais personagens, um samurai ostracizado e o seu filho, aos Tokugawa, com enredos que tocam múltiplos outros temas. Sempre feito com beleza, bom gosto, sensibilidade e com, como muitas coisas na cultura japonesa, rompantes de inacreditável violência sanguinária.

Não percam tempo e vão comprar já. Esta é das melhores obras de BD alguma vez feitas, que glorifica e enaltece a nona arte a qualquer altura atingida pela Literatura. 

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