Antes de aparecer Neil Gaiman e o seu Sandman, houve um outro autor inglês. De nome Alan Moore, quando apareceu a escrever o Monstro do Pântano para a DC (Swamp Thing, em inglês), foi muito mais do que uma mera pedrada no charco. Foi uma derrocada que o esvaziou de água. Estávamos pouco ou nada habituados a este nível de escrita na BD. Moore não era só soberbo nos enredos, era-o principalmente nos diálogos e no restante texto. Estes não se resumiam à descrição floreada do que ocorria (ainda que também o fosse). Havia uma força filosófica e reflexiva que era inédita (pelo menos, aos meus jovens olhos da altura), e que eu reconhecia apenas de um outro tipo de Literatura. Era adulto, sem ser condescendente para o adolescente que eu ainda era.  Era complexo, sem ser imperscrutável. Até hoje, questiono-me se não é (junto com Promethea) o meu trabalho favorito deste escritor.

Tudo começou na revista de formatinho da Editora Abril Novos Titãs número quatro, datada de meados de 1986, onde era publicado o The Saga of the Swamp Thing 21, dois anos depois de nos EUA. Eu já conhecia o Monstro do Pântano de outras andanças, de umas saudosas edições da EBAL, em que reproduziam-se as histórias que criaram a personagem, por Len Wein (ele outra vez) e Berni Wrightson. Quando contrataram Moore, ele chegou mesmo a pedir uma espécie de autorização a Wein, para que pudesse navegar a história de uma forma completamente diferente. Para seu mérito (Wein era gigante), este disse que avançasse como bem entendesse. Moore assim o fez e logo neste segundo capítulo (o primeiro fechava a narrativa anterior) o escritor destrói e reconstrói a mitologia do Monstro, chamando-lhe Lição de Anatomia. Mas, como já disse, a influência de Moore vai muito para além de enredo e muito para além desta personagem.

O escritor inglês fez com o seu Monstro do Pântano uma exploração cuidada de vários temas sérios, como a Ecologia, sem descurar o lado mais pop e de entretenimento, típicos do código genético da revista - super-heróis misturados com terror. Com a imprescíndivel colaboração do desenhista Steve Bisette, Moore navega, de forma raramente vista no mainstream dos supers, o mundo do horror, estética que só pelas mãos de enormes talentos consegue atingir aceitáveis níveis de qualidade na BD. Moore e Bisette seguem a pegadas do mestre Wrightson e expandem para horizontes deliciosamente arrepiantes. Até hoje, a descrição do Inferno feita por ambos permanece como um ponto alto na minha leitura de BD. A sujidade, o surrealismo, o desespero, são a pimenta que escolhem para descrever este temido destino pós-Morte. Contudo, desenganem-se se acham que a narrativa se veste apenas de negro. Um dos pontos altos desta sequência é uma cena de "sexo" entre o protagonista e a sua amada, um dos mais icónicos momentos da BD e que durou um número inteiro da revista homónima. 

O legado de Moore depois deste seu contributo é inestimável, o principal dos quais foi a certeza de que a BD de super-heróis ou a BD como um todo poderiam atingir outros patamares do que apenas o de entretenimento. Daqui nasceu o resto da invasão britânica (muito também graças a Karen Berger, que trouxe Moore do outro lado do oceano). Daqui nasceu o selo Vertigo da DC. 

O maior elogio que se pode fazer ao trabalho destes dois artistas é que sobreviveu extraordinariamente bem ao tempo. Da mesma forma que continuamos a ler Anna Karenina, Madame Bovary ou Os Maias sem perceber o peso da época em que foram feitos, o mesmo acontece com esta BD. E eu posso dizê-lo porque reli-a recentemente. Façam o mesmo. 

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