Sabrina de Nick Dranso - Porto Editora

Num mundo de quase 7,5 mil milhões de pessoas não seria de esperar que estivéssemos a afastar-nos cada mais uns dos outros. Num mundo da Internet, do Facebook, do Instagram, do Whatsapp, de uma cada vez mais rápida comunicação, não seria de esperar que passássemos cada vez mais tempo sozinhos. Podemos contactar à velocidade da luz com um amigo que está do outro lado do oceano e temos tanta dificuldade em encontrar aquele que está a 15 minutos a pé. Nunca um ser humano teve tanto acesso a tanta informação e, ainda assim, há cada vez mais espaço para a desinformação. Alan Moore, o renomado autor de BD, disse que vivemos numa "cultura de vapor", onde  a velocidade de produção de conhecimento e de informação afasta-nos, cada vez mais, do sólido, e torna efémeras, vaporosas, a atenção e a dedicação. A brilhante e relevante BD de Nick Dranso, Sabrina, é uma reflexão pesada e compassada deste século, deste ano e, provavelmente, de todos os próximos.


Tudo começa com um desaparecimento. Uma mulher, de nome Sabrina, desaparece sem deixar rastro. Familiares, amigos e namorado têm de lidar com essa tragédia. Paulatinamente, o mistério dá lugar à verdade e, num mundo conectado, as consequências não se fazem esperar. E é nessas consequências que Nick Dranso demora-se. O desenho e forma de partir a história remontam a influências óbvias como Chris Ware, mas, depois de ultrapassada essa comparação, podemos entrar de forma virgem no enredo e mensagem de Sabrina. A ilustração é minimalista e pouco inclinada a fornecer muito mais que traço e cor. A estrutura das páginas é grávida de silêncios e de momentos entre eventos. Não existe distracção do carnavalesco, apenas o incisivo da história e a apatia e solidão veiculadas pelo minimalismo gráfico.

Sabrina é habitada por fantasmas vivos. Não é novidade, nem nenhuma revelação afirmá-lo. As personagens vivem num perpétuo estado de desafectação emocional, no que diz respeito à ligação com o outro. Perambulam pelos eventos como gigantescas estátuas de egoísmo, agarradas ao seu próprio mundo e, paradoxalmente, mais próximas de tragédias sangrentas e de eventos extremos do que da simplicidade do dia-a-dia e do banal. O próprio leitor sente-se afectado por essa apatia asséptica. De que lado poderemos estar? Que protagonista é-nos mais próximo? Talvez de Sabrina, a desgraçada vítima que apenas aparece no início do livro e que, talvez, seja a única com alguma ligação emocional ao próximo - será? Não tivemos tempo de a conhecer bem. As restantes personagens principais, o namorado, a irmã e o amigo do namorado, que o alberga após a tragédia, são o alvo principal da lupa de Dranso. Pouco mais fazem do que reagir, de forma mais ou menos depressiva, ao desaparecimento e às estranhas consequências do mesmo. 

O autor aproveita para escrever duras palavras sobre este mundo cada vez mais aproximado, derivado da tecnologia, mas também cada vez menos emotivo. A intromissão dos mídia no desaparecimento de Sabrina infiltra-se na vida privada dos que ficaram, uma escalpelização voyeurista reflexo da alma do ser humano, e polarizada por este mundo cada vez mais rápido e orwelliano. De polarização de opiniões também fala Dranso, das teorias que brotam de mentes radicais e complacentes, reflexo de uma sociedade cada vez mais confortável mas que, paradoxalmente, continua aberta ao medo. As diferentes linhas do postulado do autor entrelaçam-se de forma pouco reveladora, deixando antes ao leitor a tarefa de preencher os espaços em vazio. E é nessa procura de sentido que reside uma parte do prazer deste Sabrina.

Este livro é uma análise robusta sobre o paradoxo dos nossos tempos, das realidades que nos afastam, cada vez mais, uns dos outros. É verdade que é uma obra eminentemente deste momento e, até pode dizer-se, agarrada à geografia dos EUA. Contudo, não nos acomodemos ao conforto de que estamos longe desta realidade. 

Um dos grandes livros do ano e um evento editorial em Portugal. Obrigatório ler. 

2 comentários:

Fernando Dordio disse...

Não poderia estar mais de acordo.

Encontrei este livro na Fnac em Novembro passado comprei e achei que estava com uma pérola na mão.

Curiosamente ao comentar com outras pessoas parecia que eu poderia estar a sobrevalorizar esta obra. No entanto, fico muito contente de ler uma crítica que está em sintonia com o que esta obra me fez sentir.

Excelente texto.

SAM disse...

Obrigado pelo comentário.

Eu comecei a ler num registo de expectativa e cepticismo. Por um lado, existem aqueles que dizem super-bem (alguns, até, só para parecer bem) e, por outro, os que não gostam do registo e, por isso, não apreciaram.

Eu, sem problemas, afirmo que adorei o livro. Acho-o relevante, importante, profundo. Acho que a BD também precisa destas obras mais robustas e de temática mais madura e bem-pensada.