Blackkklansman de Spike Lee

"É assim que os EUA dominam o mundo. Coca-Cola, Nike, Apple, hip-hop, rock 'n' roll, blues. Quando colocas cá fora coisas que modificam o modo das pessoas pensarem, falarem, dançarem - isso é poder. Bombardear pessoas não tem influência nenhuma. É essa a minha teoria de como os EUA dominaram o mundo: através da exportação da sua cultura, e no topo da lista está o Cinema." É Spike Lee quem o diz em entrevista à revista inglesa Sight & Sound.
Este seu último esforço na 7.ª Arte é um novo testemunho disso mesmo, mas invertendo o ponto de vista.  Blackkklansman é um filme sobre os EUA racistas, sobre os EUA negros, sobre o confronto entre estes dois Estados-(des)Unidos. Não é por acaso que Lee abre esta obra ímpar com excertos do Gone With The Wind, num  plano que culmina na bandeira da Confederação Sulista. Não é por acaso que exibe um visionamento feito na sede da KKK do filme Birth of a Nation de D.W. Griffith, que ajudou, no principio do século XX, ao ressurgir desse odioso movimento. Não é por acaso que, no discurso real de um activista negro, recupera que o Tarzan era uma fantasia branca que fazia com que os negros odiassem a sua própria cultura e origem. Spike Lee sabe que o Cinema tem um poder único como arma de propaganda e de disseminação de ideias e ideais - não esquecer Leni Riefenstahl. Por isso, também ele fez um filme que enquadra-se num cânone mal disfarçado da 7.ª Arte. Faz um filme fortemente político, que não se escuda de comentar o momento actual da História, com a ascensão de Trump à presidência dos EUA. Cinema é poder, como diz, e recupera essa influência para a sua causa.

Blackkklansman segue a história verídica do primeiro policial negro de Colorado Springs no princípio da década de 70. A início, Ron Stallworth é relegado ao papel de arquivista, até que é recrutado para espiar um comício de activistas negros. Após o sucesso dessa missão, e por livre iniciativa, infiltra-se (com a ajuda física de um colega, branco e judeu) num clube local da Ku Klux Klan. Toma a iniciativa de telefonar para a delegação local, que prontamente reconhece o seu "valor" como verdadeiro americano branco e é recrutado para fazer parte das fileiras. Em suma, a dupla identidade de Ron Stallworth torna-o no primeiro (e único) afro-americano a ser membro da infame KKK.

O ridículo do preceito não passa despercebido a Lee, que adopta um lado mais humorístico (mas não de comédia, como frisa), sem perder de vista a seriedade da situação que quer retratar: a do violento racismo que impregna os EUA desde cedo na sua História e que não desapareceu. Foi o realizador Jordan Peel (do excelente Get Out, do ano passado) quem chamou a atenção deste seu colega para a existência do livro escrito pelo próprio Ron Stallworth, lançado em 2014. Ambos partilham, claro, da mesma herança cultural e social, mas esta revela, acima de tudo, o estado actual dos EUA, um país cada vez mais vincado nas suas históricas polarizações, exacerbadas que estão pela presidência de Donald Trump. Aliás, Trump é protagonista dos últimos momentos deste Blackkklansman, com a recuperação dos incidentes de Charlosttesville ocorridos em 2017 e que Lee quer homenagear, não só pelas imagens de documentário, mas também porque o filme estreou nos EUA no 1.º aniversário deste incidente.

Spike Lee não se coíbe de fazer um filme de opiniões sublinhadas e claras, porque, tal como o afirma há várias décadas, este tema não vai lá com falinhas mansas. É uma luta racial violenta a que se passa nas páginas da História do EUA. O Cinema é a Arte americana por excelência (junto com o Jazz). É inocente ou cínico achar que nunca existiu uma narrativa "branca" prevalecente em algumas das suas maiores histórias. O realizador de Nova Iorque usa este filme para dizer isso mesmo e para recuperar esse poder narrativo para esta outra causa. Isto é um filme sério e à séria. Essencial!

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