Guerra dos Tronos - contar histórias não desapareceu com os nossos avós (e ainda bem!)



É incrível como contar histórias ainda nos comove e preenche. Mesmo numa sociedade cada vez mais afastada da natureza, cada vez mais tecnológica. Mundos imaginários com dragões, princesas, príncipes, vilões e senhores das trevas. Mesmo que a forma seja mais adulta do que a que ouvíamos quando éramos crianças.  A aparente simplicidade das narrativas vicia mas, hoje em dia, a uma escala global. Antes esperávamos pelo boca-a-boca, pela tradução do livro, pela episódio passar àquela hora na TV. Hoje em dia, vemos todos ao mesmo tempo, longe uns dos outros e, logo a seguir, temos necessidade de partilhar o entusiasmo na Internet, nas redes sociais.  A série Guerra dos Tronos não é a primeira mas é a primeira a esta escala.

Muito se deve a uma arte que (na minha opinião) faz parte de todas as outras artes e que deveria ser considerada uma arte em si mesma: a de contar histórias. A habilidade com que uns poucos manejam os truques e cativam uma audiência é uma maravilha de se ver. Neste caso falamos, primeiro e sempre, de George R. R. Martin, um residente dos EUA que tornou-se mestre desta tradição milenar. Já são muitas as considerações sobre a capacidade deste senhor em tecer um bom conto. Eu partilho de muitas dessas opiniões. Martin, acima de tudo, começa por cativar-nos com personagens bem construídas e com as quais desenvolvemos uma relação de empatia, simpatia e amizade. Antes de passar à acção e às mortes ele consegue com que tenhamos sentimentos por cada um deles. Por vezes, bem definidos, como o amor ou o ódio, outras vez mais ambíguos, como se não soubéssemos se estamos a ler sobre um herói ou um vilão. As personalidades e motivações são delineadas e descritas ao pormenor, como se (lá está) estivéssemos a conhecer alguém. Por causa disso, relacionamo-nos com elas. Por causa disso (e mais umas coisas, já lá vou), sofremos de ansiedade com o seu destino.

O curioso de Martin é que muitas das suas personagens principais têm um tipo de impedimento, físico ou social. Tyrion é anão. Jon Snow é bastardo. Daenerys é mulher. Martin, aliás, assume o seu feminismo nesta personagem mas não só: também em Sansa, em Arya, em Brienne e mesmo Cersei. Todas vivem num mundo misógino e de expectativas castradas. O curioso é que, na fase da história em que a série de TV se encontra, três delas são as governantes do continente imaginário de Westeros. Após tantas provações são elas que lideram e governam (bem ou mal). Por outro lado, existem as personagens que passaram da força para a fraqueza, como é o caso de Jaime Lannister, cuja perspectiva mudou quando perdeu a mão direita, a que lhe permitia ser um espadachim único. Depois de uma longa jornada, Jaime atinge o seu apogeu na primeira batalha do seu exército contra o dragão de Daenerys, ao não a abandonar e ao estar pronto para se sacrificar. A lição da humildade é, para Martin, importante.

O mundo que o escritor construiu é demasiado real. A imprevisibilidade é comum. A surpresa da morte de personagens que julgávamos importantes tem cativado os leitores e espectadores. A ansiedade que cada nova cena provoca é impressionante. Em muitas outras histórias estamos totalmente seguros que nada iria acontecer à nossa personagem favorita. Quem é que acha que o Super-Homem ou o Indiana Jones vai morrer no final? Pelo menos permanentemente. Na Guerra dos Tronos estamos sempre agarrados à cadeira com medo que seja desta vez que Tyrion ou a Daenerys (ou mesmo o dragão) não se safem. E muitas vezes esse sentimento acontece nos dois lados de uma mesma batalha. Tão depressa não queremos que morra o Bronn como o Drogon. Martin perdeu tempo a explorar cada personalidade, a construir empatia com cada personagem. Envolveu-nos de tal forma que somos chantageados a sentir cada morte e cada ameaça constantemente. Não há descanso.

Porque estamos a acompanhar um livro (e uma série) muitas das personagens cresceram em frente dos nossos olhos. Acompanhamos cada experiência de Sansa, de Arya, de Jon, de Daenerys, ao longo de muitos episódios, capítulos e anos. Como se estivéssemos em confidência com o nosso melhor amigo. Como na vida real. Apercebemo-nos, mesmo sem o racionalizar, que as acções e personalidades são diferentes hoje do que eram ontem, por razões que sentimos como claras. Relativizamos cada opção, muitas vezes as mais criminosas (Tyrion mata o pai, Arya é uma assassina). Uma  das minhas favoritas é Sansa, que começa como uma típica princesa dos contos de fada, suspirando por um príncipe e por uma vida de sonho num longínquo reino maravilhoso. Mas o seu príncipe é um psicopata e o reino um ninho de víboras, umas das piores sendo a sua sogra. Aliás, Cersei e Sansa são o espelho uma da outra. Ambas sonharam com uma vida de Branca de Neve mas a realidade impregnou-se devagarinho e negra. Mas enquanto Sansa parece ter aprendido a apoiar-se na família e a não se ser tão má quanto as suas experiências, Cersei afasta-se até do irmão, quem mais a ama no mundo, e torna-se numa das mais atemorizantes personalidades de Westeros. Esta lenta a progressiva construção de personagens é apenas possível em literatura e na sua herdeira, a série de TV.

A arte de contar histórias é uma das mais antigas e mais importantes. A tecnologia não a matou. Está bem viva. E a Guerra dos Tronos é disso prova.

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