Ah-ga-ssi (A Criada) de Park Chan-wook

A arte de contar histórias reside, muitas vezes, em revelar apenas uma parte do quadro. Escolher, criteriosamente, o que revelar e o que ocultar. Seduzir e cativar o ouvinte, o espectador, o leitor, a querer mais e mais com apenas uma pequena parte da tapeçaria. Outras vezes, pode ser fazer malabarismos com a mão direita quando o que realmente interessa acontece na esquerda. É uma das mais antigas formas de arte (a mais antiga?) e uma das mais cativantes de observar um artífice exímio a exercê-la. Tão capaz pode ser esse obreiro que, se for mesmo, mesmo bom, não nos apercebemos do que está a fazer a não ser no último e desesperado momento.

Esse mestre coloca camadas sobre camadas, entrelaça mil e um novelos de múltiplas cores e constrói algo que, a início, apenas reconhecemos de forma pouco definida mas que, aos poucos, transforma-se em coerência e sentido. Esta fabulosa arte de entreter, de educar, de contar uma história é, a meu ver, uma das grandes vitórias da civilização, não importa de que parte do Globo ela venha.  Park Chan-wook é da Coreia do Sul, um dos maiores realizadores vivos e um contador de histórias de superiores qualidades.

Em Portugal, muitos o conhecem pelo seu Oldboy de 2003 - um dos filmes da minha vida e, agora que o escrevo, pergunto-me como é que não o incluí nesta lista. Seguiram-se obras como Sympathy for Mr. Vengeance, Thirst, a incursão ocidental Stoker, entre outros, mas, ainda que fossem obras de excepção, nada com o lustro e a genialidade de Oldboy. Surge este A Criada, cuja singularidade narrativa e cinematográfica o transformam, imediatamente, num dos filmes do ano e um dos maiores da carreira deste realizador único e verdadeiramente original.

A história passa-se na década de 30 na Coreia do Sul e envolverá uma jovem rica e frágil, um tio excêntrico que deseja casar com ela, uma jovem sua aia e um quarto elemento, um outro homem, que irá tecer ardis para também se casar com a jovem milionária e ficar-lhe com a fortuna. O que parece um enredo banal, ir-se-á transformar num jogo de mentiras e sexualidade, com conotações fortemente feministas. Há quem o descreva como um thriller gótico com conotações lésbicas mas, sinceramente, este é apenas um mote para vender o filme. Verdades ainda mais profundas residem debaixo deste delicioso puzzle.  

Chan-wook assume o seu papel de realizador e nunca nos faz esquecer que o Cinema é uma arte narrativa com todo um arsenal de ferramentas ao seu dispor. Abusa da confiança que nós, espectadores, depositamos no contrato que estabelecemos com ele quando entrámos na sala de cinema. Faz-nos crer em algo que não existe, seja a peça de arte, seja a história que está a contar-nos. E, no jogo de espelhos, luz e sombras inscreve e escreve um mundo inteiro de culturas. 

A Criada é a marca de um dos melhores realizadores atualmente em trabalho e o melhor filme do ano que vi até o momento.

(em exibição, em Lisboa, às 19h no Cinema Monumental ou, já à venda, em DVD pela Cinema Bold)

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