Os Maias - Cenas da Vida Romântica de João Botelho

O romance Os Maias é um dos maiores da língua portuguesa e também da literatura mundial, um dos expoentes máximos do Realismo – ou, pelo menos, assim mo dizem, a mim que não sou especialista na matéria. Os portugueses de todas as idades bem o conhecem, já que somos literalmente obrigados a lê-lo (ou pelo menos um resumo) no nosso período escolar. Escusado será dizer que qualquer adaptação de uma obra tão conhecida, mesmo que por um cineasta e artista da envergadura de João Botelho, será sempre um risco. Todos terão uma palavra a dizer. Todos tiveram uma sensação diferente ao ler o livro. A passagem para a 7.ª Arte de uma obra conhecida e superior como esta abre espaço para todos emitirem opiniões porque todos têm legitimidade de a ter – eu percebo a ironia do que acabei de escrever.

João Botelho, numa entrevista que tive a sorte de ouvir na Antena 3, é um homem com prazer especial em adaptar ao cinema obras da literatura portuguesa e mundial. É um dos mais acérrimos adoradores de Fernando Pessoa, tendo passado para cinema um dos mais difíceis e intransponíveis livros do autor, O Livro do Desassossego – um projeto que, na minha opinião, não sei se posso apelidar de cinema, mas antes de uma coleção de imagens em movimento com textos de um dos maiores escritores da humanidade, um OVNI que desafia qualquer tipo de classificação (e ainda bem). Obviamente que Os Maias escreve-se de uma forma mais convencional e adaptável, sendo uma das mais belas histórias alguma vez escritas, não só metida dentro do estilo literário que tem outros grandes nomes como Tolstoy e Dostoievski, como uma herdeira dos clássicos gregos, da tragédia, partilhando temas com obras como Rei Édipo, Medeia, etc.

Botelho filma de forma esplendorosa, buscando o famoso chiaroscuro de Caravaggio, que emula de forma assumida e revelada, fazendo-se valer da sua arte, da fotografia e da iluminação para suplantar obstáculos como a falta de orçamento, para adaptar de uma forma menos “sumptuosa”. Mas uma oportunidade destas não deve ser desperdiçada e Botelho não o faz, colocando a sua arte de décadas ao serviço da Literatura e do Cinema, conseguindo uma peça que não envergonha nenhuma delas. A solução dos cenários, da “falsidade”, é assumida logo no genérico mas também pelo facto de recorrer, nos exteriores, a pinturas. Aliás, a pintura, uma das grandes paixões do realizador, é omnipresente no filme, funcionando como cenário e mesmo como comentador ao enredo - uma das últimas cenas do brilhante João Perry é disso prova. Existe uma confluência de gostos de Botelho que o tornam, acima de tudo, um verdadeiro artista, alguém capaz de imprimir a sua visão pessoal em tudo o que toca.

Infelizmente, o filme tem, para mim, uma grande falha: os atores escolhidos para fazerem de Carlos da Maia e João da Ega. São estes os elos fracos numa tapeçaria que, de outra forma, seria uma obra de valor indiscutível. O casting falhou, e isso nota-se principalmente porque falamos dos personagens com mais tempo de ecrã e aqueles que funcionam como âncora não só do enredo como da “moral”, da “sub-textualidade”, da obra. Confesso que a apreciação do filme foi bastante prejudicada pela pouca complexidade dada pelos atores aos personagens. São eles a principal razão de uma primeira metade mais complicada. Felizmente, na segunda parte, a situação é corrigia pela entrada em cena de Maria Eduarda e, consequentemente, do enredo principal, da famosa história de amor incestuosa. A atriz brasileira consegue aquilo que os outros dois têm incapacidade para fazer: pegar em diálogos diretamente retirados do brilhante Eça de Queiroz (uma das soluções ganhadoras do filme) e dar-lhes alma e emoção. Monocórdicos substituídos por entoação. Existem outros atores que vão muito bem: o já mencionado João Perry; os pequenos papéis de Ana Moreira e Rita Blanco; Hugo Mestre Amaro. Todos contribuem para um todo bastante bom.


Este é um filme que deve ser visto e incentivado porque tem de existir espaço para obras deste género em Portugal, transversais aos vários sectores da sociedade e capazes de colocar portugueses a ver cinema português.

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