Metatexto versus Identificação

Um título tão pretensioso só podia ser dado a um post igualmente afectado, não é? Sim e não.

Num número recente da revista de BD Superman / Wonder Woman, o Super-Homem declara algo verdadeiramente importante (vêm aí spoilers): diz amar Diana – para quem não sabe, a Mulher-Maravilha. A relação amorosa de ambos, obviamente, irá passar para um outro nível. Não sabemos qual porque o capítulo que se segue ainda não saiu.

Esta relação deu espaço para muitos debates, uns a favor, outros contra (sou dos a favor – já o esperava desde a década de 80). Houve, contudo, um argumento contra que me pareceu bastante interessante. Alguém refere que o amor entre estes dois personagens super-poderosos não deveria acontecer. Que cria uma sensação de distância entre o leitor, mundano, e os personagens, reais, divinos, excepcionais mesmo dentro da classe excepcional da qual fazem parte. 

Isto fez-me pensar. Principalmente na relação que temos com as histórias. Por conseguinte, no modo como os escritores podem abordar a construção das mesmas. O relacionamento que temos com as histórias e os seus personagens pode ter diferentes formas ou ser uma combinação de várias. Emocional. Racional. Intelectual. Filosófico. Ideológico. Podemos achar que queremos que funcionem como um reflexo dos nossos pensamentos e ideias. Que deveriam almejar reproduzir um mundo melhor. Ou, pelo menos, apontar defeitos e virtudes. Uma alegoria, portanto. Existem também histórias que valem por e dentro de si mesmas. Uma espécie de Arte que vale pela Arte. Do universo fictício que se comenta a si mesmo. A isso se chama meta-texto. Escolher uma ou outra aproximação numa história (ou ambas na mesma) é sempre uma escolha do caminho do artista e de leitura/visionamento para o apreciador. Não há mal em nenhuma delas.

Claro que o modo como as escolhemos ver reflecte aquilo que somos ou, pelo menos, o que estamos a sentir numa determinada altura. Se preferimos ser sublimados pelo afastamento em relação à realidade. Se preferimos ser alertados em relação ao que se passa à nossa volta. O mais comum é umas vezes optamos pela primeira e outras pela segunda. No equilíbrio que fazemos entre entretenimento e reflexão passa muito do modo como nos relacionamos com a Arte, os obras de arte e com os personagens (quando nelas existem). E, claro, existem ainda outras duas coisas. Uma, quando conseguimos ver entretenimento e reflexão na mesma frase, na mesma imagem, quando conseguimos, sem preconceitos, olhar para um simples arranjo de flores e ver anjos a cantar (esta frase não é minha, é parecida com uma de Grant Morrison). A segunda, a mais importante, é o gostar. Gostar mesmo. Sem contexto. Sem necessidade de pretensa. Absorver a Arte de que gostamos como se de ar se tratasse. E, nisto, cabe tudo o que disse.




4 comentários:

Paulo Costa disse...

Os universos de super-heróis funcionam muito melhor desde que deixaram de tentar reproduzir "o mundo lá fora mas com gajos a voar" e tentam criar os seus próprios universos coesos. Neste caso, dois seres super-poderosos encontram um no outro a compreensão que não pode existir na humanidade comum.

SAM disse...

Obrigado, Paulo, pelo comentário e participação. Esse é, de facto, um dos pontos que quis abordar.

silentsoul disse...

O que a Marvel e a DC estão a fazer é nada mais do que desconstruir a sua própria história, a história dos seus personagens. O que me parece é que nessa desconstrução estão a destruir-se. No caso do Homem-Aranha, ao lhe negarem todo o seu passado com a estupidez do esquecimento do seu amor pela Mary Jane e anulamento do seu passado comum enquanto casados para voltarem atrás no tempo, para uma altura em que o Peter não tinha amor, nem emprego, nem casa, como que a voltar a estado inicial e puro é a negação da própria Marvel. Ou seja, a Marvel costumava colocar os seus personagens com problemas reais e mundanos para resolver, mas a revelação da identidade secreta do aranha, a sua vida de casado e com emprego, a aparente possibilidade de morte da tia May, foram problemas reais a mais para o Quesada conseguir aguentar. No caso do Super-Homem, personagem divina, um deus na terra, pode pensar-se que entidades super poderosas tenderam a ter mais em comum, logo o amor entre dois super será o mais normal. Mas na minha opinião o super-homem, alienígena, poderoso, um deus, teria muito mais a ganhar com a sua faceta humana, de homem e capaz de se apaixonar por uma mera humana.
Não digo que explorar outras realidades com os universos conhecidos não possa ser bom, mas para mim que há muitos anos leio comics estes reboots constantes cheiram-me mais a falta de ideias verdadeiramente inovadoras. O que para mim, no caso da Marvel, tinha de bom era as suas personagens viverem as suas vidas sequencialmente, em que passavam por agruras e alegrias na vida e seguiam em frente, umas vezes mais fortes, outras mais fracos, mas tendo sempre presente a sua história como algo que os definia para o bem e para o mal.
Peço desculpa pelo longo texto e por ter fugido um bocado ao tópico.
um abraço
Nuno Dias

SAM disse...

Nuno.

Não tens de pedir desculpa por nada e a tua reflexão só acrescenta. Muito obrigado pelos comentários.

O que referes é exactamente o que eu tb abordo no post. Ou seja, diferentes pessoas irão olhar e relacionar-se com os seus personagens e histórias favoritas de diferentes formas. Não existe nada de errado com nenhuma opção. Muito pelo contrário. Apenas acrescenta sal à discussão.

As sucessivas formatações dos universos, na minha opinião, podem ser boas ou más, dependendo apenas da qualidade do que se lhe segue. A seguir à Crise nas Terras Infinitas sucedeu-se a formatação que me atraiu para a DC, a minha editora de BD de super-heróis favorita durante 25 anos. Teve coisas erradas? Sim. Podíamos continuar aqui a discutir este assunto eternamente e com gosto. Acho, contudo, que arquétipos que duram há 75 anos vão, necessariamente, passar por isto várias vezes. É bom? É mau? Para mim depende apenas de uma coisa. A qualidade. E isso, claro, é subjectivo.

Uma vez mais, obrigado pela tua excelente contribuição.