Dos The Walking Dead para Invincible: A viagem de Kirkman

Uma das séries de TV com maior êxito e audiências nos últimos anos pertence a um canal de cabo americano que todos os fãs de George Romero (e não só), o guru dos filmes de zombies, conhecem muito bem: The Walking Dead. O que provavelmente não sabem é que a série é baseada numa BD americana do mesmo nome que começou a ser publicada em 2003 e que foi criada por três senhores: Robert Kirkman (escritor), Tony Moore e Charles Adlard (desenhistas). Não descurando a importância dos desenhistas, foi de Kirkman a ideia principal, o momento eureka. Um dia quis responder a uma pergunta: como continua a história nos filmes de zombies depois de rolarem os créditos finais e sairmos da sala de cinema? Assim nasceu The Walking Dead.

A primeira grande obra de Kirkman não foi, contudo, esta inovadora variação (não tanto no conteúdo mas mais na forma) de um tema tão prolificamente tratado nos filmes de terror. Foi antes uma muito convencional série com um super-herói adolescente, uma espécie de Homem-Aranha “meets” Super-Homem para o século XXI (perdoem-me a horrível linguagem de gestor de Hollywood). Como a maior parte das boas ideias, por vezes não são os conceitos inovadores que contribuem para a receita do sucesso mas antes a forma como se cozinham os ingredientes. Com Invincible e The Walking Dead, Kirkman extrapola conceitos básicos, batidos, facilmente reconhecíveis - em suma, lugares-comuns - e, munido de uma liberdade criativa normal para quem é dono dos seus próprios personagens, consegue criar histórias verdadeiramente empolgantes de desavergonhado entretenimento.

Kirkman chegou a trabalhar para a super-editora Marvel em personagens tão conhecidos como os X-Men e o Homem-Aranha, mas cedo chegou à conclusão que a liberdade criativa que se consegue através da publicação independente é dificilmente superável. Com as suas próprias criações, Kirkman, à semelhança de tantos outros autores da realidade editorial, conseguia jogar com a vida dos seus personagens, transformá-los, evoluí-los, amadurecê-los, de uma forma impossível num universo tão “franchisado” como é do Marvel. Invincible e The Walking Dead são parte da evolução dessa consciência e, quando os lemos, temos a confortável insegurança de que qualquer coisa pode efetivamente ocorrer com os personagens. Ninguém está a salvo. Nenhum axioma está seguro. Nenhum conceito é estanque. O suspense é total.

Invincible conta a história de um legado, de um rapaz que herda as fantásticas habilidades de seu pai. Como inspiração para o personagem do pai Kirkman emula o arquétipo Super-Homem, ou seja, o super-herói todo-poderoso, adorado pelo público em geral, o zénite da perfeição e da bondade, o super-herói dos super-heróis. O pai é um extraterrestre enviado para divulgar a mensagem de paz da sua raça, um Siddhartha intergaláctico com verdadeiros superpoderes. Mark Grayson, o filho e protagonista da série, descobre as suas habilidades na adolescência e depressa se assume como herdeiro decidindo perseguir o seu legado genético. Esta origem padece de incrível banalidade mas o que ocorre ao longo das histórias, não sendo incrivelmente original, é extraordinariamente divertido, sendo fácil para o leitor (mesmo o não entendido nestas coisas dos super-heróis) de acompanhar Invincible sem perder-se ou sentir-se ostracizado.

Obviamente que não vos vou aqui revelar nenhum pormenor dos desenvolvimentos que já acorreram nas 16 colecções que juntam todos os quase 100 capítulos desta fabulosa série, mas Invincible continua a ser uma BD a acompanhar, pelo simples facto de ser muito bem escrita por um Kirkman que controla como um cientista as doses certas de momentos calmos, de acção e de surpresa (e estes últimos são muitos, um dos grandes fortes da escrita de Kirkman). Inúmeras são as vezes que o leitor não consegue parar de virar página atrás de página na ânsia de saber como tudo continua, ou de ficar siderado quando se depara com aquele acontecimento que o faz exclamar “mas tenho de esperar pela próxima colecção para saber como isto acaba?!”.


Este controlo da forma narrativa da BD foi também um dos grandes trunfos de The Walking Dead. Kirkman, Adlard e Moore (este último apenas desenhou os primeiros 6 capítulos) apropriam-se do simples virar de página para provocar o momento de terror que antes era apenas reservado ao cinema. Os zombies, conhecidos pela sua lentidão, tornam-se verdadeiros elementos surpresa na acção, podendo surgir no canto do quadradinho ou quando passamos para a página seguinte e nela testemunhamos um painel de página inteira com algo surpreendente. Mas os zombies não são, decididamente, o mais importante elemento desta série. À semelhança do mestre George Romero, a atenção é totalmente dedicada não ao elemento terror mas antes aos seres humanos que são afectados por ele, a todas as idiossincrasias, a todos os pequenos momentos de evolução ou involução pessoal que advêm deste evento catastr. O que faz o leitor regressar mês após mês, colecção após colecção (nos EUA já vão em 17 fascículos), é o investimento pessoal de cada um de nós nos seres humanos que compõem a série. Desde Rick Grimes, protagonista, e o seu filho, que nos acompanham desde o início, passando por Michonne, a ronin de poucas (ou nenhumas) palavras, Glenn e Maggie (que formam um dos pares amorosos que tenta sobreviver neste mundo pós-apocalíptico), entre tantos outros.


Robert Kirkman tem mais séries publicadas mas estas duas, da editora americana Image, são sem sombra de dúvida as suas melhores e mais famosas. Em Portugal, The Walking Dead tem quatro volumes publicados pela Devir e, infelizmente, de Invincible ainda não vimos sequer a sombra.




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