Guerra dos Tronos: Não confundir com O Senhor dos Anéis


Guerra dos Tronos é a muito conhecida série de TV produzida pela HBO e baseada nos livros da saga As Crónicas de Gelo e Fogo, escritos pelo autor norte-americano George R. R. Martin. A publicação dos 7 volumes planeados começou em 1996, mas a sua conclusão (com o lançamento dos dois últimos) ainda não está prevista. A velocidade de escrita de Martin é, infelizmente, tão glaciar quanto o ritmo do enredo da Guerra do Tronos mas, como o próprio refere, a obra não ficará conhecida pela rapidez com que a realizou mas pela qualidade da mesma. Portanto, resta aguardar pela publicação do 6.º volume (The Winds of Winter), previsto para 2014, e do 7.º e último numa data ainda a especificar (A Dream of Spring).

George Martin nunca escondeu que é fã do pai e fundador dos romances de Alta Fantasia, J.R.R. Tolkien, mas ao mesmo tempo não quer que a sua obra-prima seja confundida com O Senhor dos Anéis, da autoria deste último. Claro que não pode desmerecer este seu antecessor já que, não só criou um estilo do qual, de uma forma ou outra, é devedor (tal como Tolkien deve a Homero, às lendas Arturianas, a Beowulf), como o sucesso da trilogia do Senhor dos Anéis teve impacto suficiente para abrir caminho à aprovação da Guerra dos Tronos pela HBO. Mas, verdade seja dita, o relato de Martin é bastante diferente do de Tolkien, apenas se assemelhando a este no facto de se passar num mundo de fantasia de laivos cavaleirescos e mágicos. Mas as semelhanças param por aqui. Martin é mesmo peremptório em afirmar, em jeito de brincadeira (ou se calhar, não de tanta brincadeira assim), que em As Crónicas de Gelo e Fogo não há nem haverá os aborrecidos elfos.

O enredo da saga tem como palco dois continentes deste mundo inventado, Westeros e Essos, e conta a história da disputa da governação do primeiro, levada a cabo por sete famílias reais – ainda que se centre principalmente em três: os Lannister, talvez os mais maquiavélicos; os Stark, os mais honrados; Os Targaryen, os depostos mas talvez futuros reis. Como não poderia deixar de ser num romance de Alta Fantasia, uma sombra aproxima-se, vinda do Norte e sob a forma de um Inverno rigoroso e de espectros de mortos-vivos, percursores de um exército e de uma entidade das trevas que, paulatinamente, se aproxima do mundo. O que difere Guerra dos Tronos de O Senhor dos Anéis é o facto do lado mágico e fantasioso ter episódios apenas esporádicos, preferindo centrar o enredo nas maquinações que ocorrem nos bastidores da conquista do poder, na ambição pela governação do Trono de Ferro, assento máximo e simbólico dos governantes de Westeros. Este é um romance de intriga palaciana, revelando as mais intrincadas e atrozes formas que os diferentes atores escolhem para se suplantarem, muitas vezes à custa de actos hediondos. Não há tréguas, cada um vale por si, e geralmente os mais honrados têm o destino mais desgraçado, como se Martin colocasse um contraponto a todos os romances de cavalaria, onde o Bem triunfa e a Honra é sistematicamente recompensada.

Nenhum dos personagens deste romance é facilmente classificável. Todos se perpetuam numa área cinzenta de moralidade, portanto toda ela dúbia, indefinível. Este lado da narrativa é fortemente sublinhado pela escolha estilística do autor, que escreve cada capítulo sob o ponto de vista de diferentes personagens. Martin não gosta do narrador omnisciente porque, como o próprio refere, ele não existe no real. Todas as ações são presenciadas por alguém que possui um prisma sobre os acontecimentos, uma subjectividade, que o autor explora através deste método. Claramente, este é algo que nos escapa na série de TV, onde dificilmente sabemos o que cada personagem pensa, qual o seu passado, não só por imperativos de tempo como também pelas características intrínsecas a cada meio. Nada de novo na transposição da prosa para o cinema e TV.

Obviamente que esta indefinição moral e ética dos personagens deverá ser sempre entendida no âmbito do tipo de romance em que A Guerra dos Tronos está inserido. Todo o estilo narrativo escolhido por Martin se encaixa nos trâmites mais clássicos da Alta Fantasia, se não na forma, pelo menos no conteúdo. Existe uma descrição exaustiva de cada nome, de cada estrada, de cada castelo, mesmo da gastronomia (aliás uma das imagens de marca), tudo num ambiente devedor à Idade Média e aos seus códigos e atmosfera.

Westeros emula a Inglaterra ou Europa medievais, onde os estandartes erguem-se, orgulhosos, por cada família, e os cavaleiros, com pesadas armaduras sobre os ombros, são tratados por Sor (palavra popular portuguesa que se refere a senhor). Essos, por sua vez, afastado pelo apropriadamente apelidado Mar Estreito, faz lembrar o Norte de África e Médio Oriente da mesma era da História.

Apesar disto tudo, não podem faltar alguns aspectos mais fantasiosos, como os referidos espectros, a Magia ou os famosos Dragões que, contudo, estão longe do arquétipo falante, sábio ou tenebroso. Aqui são retratados como ferozes animais irracionais a ser domados como um cavalo (ainda que com capacidades bélicas bem diferentes). Martin não descura os aspectos mais tradicionais do cânone, se bem que se incline para a quase-omnipresente componente da intriga.

A publicação dos livros da saga é assegurada em Portugal pela editora Saída de Emergência que, contudo, escolheu dividir cada um dos cinco volumes em dois. A 1.ª e 2.ª temporadas da série de TV adaptaram os dois primeiros volumes originais (quatro em Portugal), enquanto a 3.ª (atualmente em exibição) e a 4.ª (a sair para o ano) trazem para o pequeno ecrã o maior volume da história, A Storm of Swords (em Portugal A Tormenta das Espadas e A Glória dos Traidores). Uma das outras imagens de marca dos livros é que nenhum dos personagens, mesmo os que consideramos principais, é certo chegar ao final com vida. O que aliás é um dos aspectos mais surpreendentes do volume atualmente a ser adaptado.


Ainda que às Crónicas de Gelo e Fogo falte muita da imaginação delirante de Tolkien, da sua prodigiosa capacidade para construir mundos e mitologias, ganha pelo lado marginalmente mais adulto e orientado para o enredo cativante e verdadeiramente viciante. O que aliás tem sido provado pelo enorme sucesso da série de TV. Mas, como é meu costume aqui nestas sugestões, tenho de recomendar lerem os livros porque eles são mesmo... lá vai o cliché...melhores que a série.


Sem comentários: