Frank Miller tornou-se num dos poucos escritores/desenhistas de
BD que saiu do mundo anónimo desta arte e assumiu-se no mainstream. Segura
e lentamente foi construindo uma obra irrepreensível e inquestionável que
edificou a actual fama e o reconhecido mérito.
Começou como muitos começam, a desenhar uma quase incógnita BD que
adaptava a série de TV Twilight Zone,
mas após ilustrar dois números de uma revista mensal do Homem-Aranha de 1979 o seu talento passou a ser melhor reconhecido
pelos pares e pelo público (publicadas pela Levoir-Público
no primeiro volume Heróis Marvel
publicado em 2012). Deste personagem, Miller
salta para um outro, o homem sem medo conhecido por Demolidor (Daredevil, no
original), este o definitivo trampolim para a fama.
A revista homónima do personagem estava ameaçada de cancelamento e,
como era habitual, foi dada carta-branca a um criador menos conhecido para
fazer aquilo que bem entendesse. De início era apenas o desenhista, mas quando
o escritor regular da revista a abandonou, imediatamente e sem qualquer tipo de
compunção ou vergonha, Frank Miller
começou uma das mais extraordinárias criações da década de 80. As suas
histórias foram um dos marcos evolutivos da BD americana, ao escrever com
vincada assinatura e total liberdade um personagem que ganhou vida e
personalidade, inclusive superando o criador deste herói cego, o mítico Stan Lee. A relação simbiótica de Miller
com o Demolidor durou vários anos e o que este autor trouxe para o
personagem foram basicamente todas as suas idiossincrasias. Começou com o amor
pela banda desenhada japonesa, o Mangá, e muito especialmente uma obra, Lone
Wolf & Cub, o que se sentiu logo na primeira história com o
aparecimento de uma antiga e esquecida paixão do personagem, uma ninja
marcada pela morte extemporânea do pai. Havia a sensibilidade noir não
só influenciada pelos mestres desta literatura como Philip Marlowe ou Raymond
Chandler, mas também pelos representantes deste estilo na BD como o Will
Eisner e a sua criação Spirit. Os homens eram duros, a cidade suja,
as mulheres fatais. E o Demolidor saiu da sombra do cancelamento e
passou a vigorar no átrio dos personagens mais míticos da Marvel. Frank
Miller teria ainda outras oportunidades com este, agora seu, personagem,
sendo a mais conhecida a extraordinária história Demolidor Renascido
(recentemente publicada pela Levoir-Público) que, uma vez mais, ajudou a
trazer a merecida maturidade para uma arte tantas vezes posta de lado como infanto-juvenil.
O ano de 1986 é considerado por muitos entendidos como o melhor da
Banda Desenhada americana, e claro que Frank Miller esteve no meio dessa
tormenta, nomeadamente com The Dark Knight Returns, o relato dos últimos
anos de um Batman reformado. Miller apresentou-nos um Batman
afastado há cerca de 10 anos e que, confrontado com uma cidade e sociedade
anárquicas que não reconhece, decide voltar e impor a sua forma de ordem. Não
existe nesta BD nenhum compromisso infanto-juvenil. O Batman de Miller
é um vigilante negro, determinado e com laivos despóticos, sem complacência
para filosofias new age de compreensão das razões do criminoso. Mas o
autor, ao contrário do que seria de esperar, não se afastou da matriz que criou
Batman, antes aproximou-se mais porque o Cavaleiro das Trevas
original não era um simpático super-herói, mas um implacável justiceiro.
Com a fama conseguida com The Dark Knight Returns, Miller continuou
com Batman, mas desta vez para relatar a origem definitiva do herói em Batman:
Ano Um (ambas estas histórias
foram publicadas pela Devir). Em apenas duas obras de quatro capítulos
cada, o autor conseguia imprimir a sua visão de forma indelével em mais um
personagem mítico da BD americana e, ainda que nas duas décadas que se seguiram
tenha voltado a este personagem, estava agora preparado para outros voos.
Segue-se a publicação independente.
O autor foi um dos criadores a transferir-se para a já na altura
relevante editora independente Dark Horse, onde criaria duas das mais importantes
bandas desenhadas da década de 90: Sin City e 300. Se já ouviram
falar destes nomes poderão ser uma de duas coisas, fãs de BD ou de Cinema. As
duas obras foram adaptadas para a 7.ª Arte pelos realizadores Robert
Rodriguez (na companhia do próprio Miller e de Tarantino) e Zach
Snyder, respectivamente, e tinham a característica de fiel e quase
fanaticamente transferir para a película as pranchas e as palavras do autor,
revelando um amor e reverência geralmente reservada ao mais renomeado dos
artistas. A idolatria não era desmerecida.
Em Sin City, Miller
dava asas à sua inclinação noir, já revelada em Demolidor e
Batman, assumindo-a e hiperbolizando-a. Os homens eram extraordinariamente
duros, a cidade caricaturalmente suja e as mulheres… ah, as mulheres…
desesperadamente fatais, perigosamente curvilíneas, arrebatadoramente belas. As
situações eram de limite, tão perto do abismo que o monstro que nele habitava
desenhava o bafo quente das suas entranhas podres no semblante de quem para ele
olhava. O fim dos protagonistas raramente era belo. A tragédia ecoava forte nas
ruas esconsas de Sin City.
Finalmente, em 300, o escritor/desenhista cumpre um sonho de
longa data e decide relatar a famosa Batalha das Termópilas onde,
segundo alguns, o destino da civilização ocidental foi decidido por 300
soldados Espartanos liderados pelo seu Rei, Leónidas. A simplicidade do
evento atraiu Miller que, determinado, partiu para a investigação in
loco do momento histórico e adaptou-o numa BD que veio a revelar-se um
êxito, não só de vendas como também de crítica. Como em todas as suas obras,
imprimiu a sua muito particular visão em pormenores como a vestimenta dos
guerreiros, a linguagem, os planos, a velocidade da narrativa, o ponto de vista
dos eventos, entretecidos num todo coerente com a sua personalidade. E foi
sempre isto o que o elevou um pouco acima dos pares. A voracidade com que
imprimia uma visão nas obras às quais se dedicava. Só assim se constrói um
verdadeiro autor.
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