Um homem, classe média americana a viver numa cidade média americana,
professor liceal de química, com uma mulher grávida e um filho com uma ligeira
deficiência motora. Este homem tem de trabalhar em dois empregos diferentes
para sustentar a família e aguentar a hipoteca de uma vivenda, uma habitação
perfeita e normalmente grande para os padrões norte-americanos. Este homem
trabalhou uma vida inteira para suportar as despesas que uma família do american dream tem de aguentar. Este
homem descobre que tem um tipo de cancro incurável e, cujo tratamento, não deixará
uma herança robusta mas antes um monte de despesas a uma família por quem
justificou uma vida perfeitamente mediana. Este homem, que subverte os cânones
da típica série de TV protagonizada por uma família norte-americana, decide
colocar em prática os conhecimentos de química que possui e fabricar quantidades
industriais de metanfetamina, com uma qualidade impar para o mercado da cidade
média onde vive e - vai-se descobrindo – arredores. Ao mesmo tempo, numa
deliciosa inversão de papéis, pede ajuda a um ex-aluno para lhe vender o
produto. O professor é Walter White (Bryan Cranston) e o aluno é Jesse Pinkman (Aaron Paul). A série é a extraordinária Breaking Bad e, a partir do próximo domingo nos EUA, começa a
última rodada de 8 episódios.
Por detrás deste alto conceito, que de certeza foi utilizado pelos
escritores para vender a série aos produtores, existe um outro, mais
pernicioso, e que o nome deixa apenas adivinhar. Breaking Bad é uma “cautionary
tale”, um conto que funciona sob a égide do mote “o inferno está cheio de boas intenções”, o relato de como um homem,
aparentemente bom, se deteriora face a um objetivo que ele considera ser
superior a todos os meios, por mais nocivos que sejam. Esta é efetivamente a
história de como alguém se transforma, se parte e reagrupa, em mau. Contudo, o
modo como o novelo enreda, lenta e astutamente, o personagem principal, é o
repisar de conceitos já trilhados pela literatura, por exemplo. Walter White emula o Fausto de Goethe, onde o personagem principal faz um trato com o diabo em
troca de algo, um algo que julgava ser mais importante que a própria alma. É
também um proativo MacBeth (sem a sua
Lady), que não olha a meios para
atingir um fim que (neste caso) ele próprio previu. Ou, como gosto muitas vezes
de pensar, este é o conto de como Lex
Luthor, o arqui-inimigo do Super-Homem,
poderia ter nascido (será que alguém reparou que, por via da quimioterapia, o
Sr. White é careca?).
O que, em cinema por exemplo, seria feito de forma rápida, nesta série
de TV, que terá um total de cinco temporadas, é arquitetado ao ritmo da vida
real. Observamos, pelas decisões tomadas por Walter e pelos eventos que as determinam, a queda, não tanto de um
anjo, mas antes de um ser humano banal, mediano. Para o Sr. White existe sempre um pouco mais além,
um passo mais que pode ser dado mesmo que em detrimento do amontoado de
cadáveres (literais e metafóricos) que se vão ficando pelo caminho. Movido por
um sentimento que julga ser maior (acumular dinheiro para assegurar um futuro
confortável para sua família), ele vai deixando cair, um por um, os limites
éticos e morais com que previamente regia a sua vida, cometendo, a início, pequenos
atos fora-da-lei. Mas, à medida que o tempo, a ambição e os obstáculos vão
crescendo, esses pequenos atos maturam-se em outros apenas cometidos por alguém
que, ele próprio anteriormente, consideraria como um criminoso merecedor de
castigo. Esta transformação é uma metáfora de enorme poder e alcance, não só
para nós espectadores, que observamos, atónitos, ao nascer de um demónio, como
também para os que partilham da vida de Walter
White. O que antes era um meio para atingir um objectivo (recorrer ao crime
para conseguir dinheiro), transforma-se num meio para atingir outro objectivo (a
busca pura e simples do poder). O que os escritores conseguem executar é um
poderoso conto que relata e explica (demonstrando e não dizendo) alguns dos
mais básicos sentimentos do ser humano. Quantos de nós não se questionaram,
frente ao mais rico dos magnatas ou ao mais poderoso dos políticos, porque
continuam na sua senda por mais, quando o que têm parece-nos mais do que o
suficiente? A engrenagem que perpetua estes homens está para lá do puro
hedonismo, antes reside no âmago do controlo do espaço à sua volta, na eternização
da semente para lá dos meios convencionais.
Uma última questão. Enquanto Walter
White, o estudado professor de química, se transforma naquilo tudo que aqui
descrevi, o que acontece a Jesse Pinkman,
o ex-aluno, desistente do liceu e passador de metanfetamina? Aquele que, para
os escritores, era um personagem que estava destinado a morrer cedo, acaba por
se transformar não só num contraponto do protagonista mas também, ele próprio,
parte integrante da construção da cautionary
tale. Uma lembrança poderosa de que nós não só não somos ditados pela
genética, como também, em todos os momentos das nossas vidas, estamos sempre a
ser sujeitos a escolhas, e que essas escolhas possibilitam-nos alterar o nosso
caminho em qualquer momento do percurso.
Breaking Bad não é a vida mas um comentário poderoso sobre ela, e
esses aparecem muito de vez em quando.
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