Os anos 90 são
sobejamente conhecidos dos fãs da BD americana. Foram anos de excessos, de
falências, da vitória da imagem sobre o conteúdo temperada pelo aparecimento de
novas linguagens de qualidade. Mas uma das modas mais perenes foi a da transformação
completa do status quo de um
personagem clássico, muitas vezes implicando a sua morte. Foi o caso do mais
famoso dos super-heróis, o Super-Homem,
cuja morte, lembro-me perfeitamente (estava na faculdade), foi notícia de
primeira página de vários jornais, inclusive no nosso Público. A este evento seguiram-se várias outras transformações
(com morte ou não) como o da Mulher-Maravilha,
Homem-Aranha, Lanterna Verde, Arqueiro Verde, Capitão América, etc. Não
existia um mês cujas parangonas dos catálogos de BD não anunciassem a próxima
“grande revolução na vida do personagem” x ou y. O Batman, obviamente, não foi exceção e teve o nome de Knightfall.
Esta mega-saga, que
durou cerca de um ano, não implicou a morte do personagem, mas antes a total
incapacitação física às mãos de um dos vilões mais tenebrosos da sua galeria: Bane (que vimos, recentemente, no
excelente filme Dark Knight Returns).
Bane fez o que o Joker nunca havia conseguido: derrotar totalmente o Cavaleiro das Trevas, extenuando-o para
lá dos limites da capacidade humana e acabando com a sua cruzada ao quebrar as
costas do herói e relegando-o a uma cadeira de rodas. Um começo auspicioso para
o personagem. Incapaz de prosseguir a sua missão, Batman escolhe um relativo desconhecido para continuar a sua missão,
um jovem de nome Jean Paul Valley,
discípulo da Ordem do Santo Dumas, munido
de um treino sobre-humano capaz de prosseguir o trabalho daquele que todos
consideravam insubstituível.
Numa época que
vinha na esteira de obras seminais como The
Dark Knight Returns de Frank Miller
e The Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons, a missão do herói parecia ter mudado. Não era
necessário apenas a boa vontade ao estilo escuteiro tão bem representada pelo Super-Homem, antes eram precisos homens
duros que matavam e incapacitavam. Jean
Paul Valley era um homem destes, violento, vingativo, capaz de fazer
justiça de forma brutal e assassina. Os artistas, que queriam provar que Batman era insubstituível, ou melhor,
que os valores clássicos dos super-heróis não estavam abertos a interpretações,
puseram-se em campo utilizando os clichés da altura (o uniforme do personagem é
um desses maiores clichés) e construíram uma saga que culminaria,
indubitavelmente, no regresso do original. Mas o que interessava era o caminho
até lá. E que caminho.
A coleção em três
volumes que a DC Comics recentemente
fez de toda esta saga agrega aquele que me parece ser a esmagadora maioria dos
respetivos capítulos - não me dei ao trabalho de confirmar o que faltará mas, o
que quer que seja, não deverá ser verdadeiramente relevante. O formato não
poderia ser mais apropriado porque, em meras três gigantes leituras (cada tomo
tem cerca de 500 páginas), consegue ler-se, do princípio ao fim e sem
interrupções, todo o esforço em volta desta odisseia. Devo ter lido esta saga,
pela primeira vez, numas edições de formatinho brasileiras ou de versões
portuguesas das brasileiras, e o que lembro não é, de todo, agradável.
Traduções fracas, formato desapropriado, leitura dispersa no tempo. Estes três
tomos, volto a dizer, são o formato correto para se ler uma saga longa e
complexa como esta.
Parece-me que o
passar do tempo foi particularmente feliz para Knighfall que, ainda que tenha nascido de um qualquer imperativo
editorial e mercantilista, acaba por não ceder sobre o seu próprio peso e
constitui-se como uma leitura (ainda que de mero entretenimento) bastante
agradável. Todo o percurso da queda de Batman,
passando pelo caminho longo do seu sucessor, é feito por um amplo conjunto de
artistas que, ainda que díspares e cada um com a sua própria voz, conseguem
imprimir um todo coerente. É notório um fio condutor (imagino que editorial) mas
sem perder um átomo da idiossincrasia necessária para que a leitura não saiba a
McDonald’s. Lembro-me de episódios
particularmente interessantes, nomeadamente o que envolve o primeiro encontro
entre Jean Paul Valley e a Mulher-Gato, um confronto que revela não
só a natureza do primeiro, como o tipo de relação da segunda com o detentor
original do manto de Batman.
Obviamente que o
cerne desta saga, provar que a missão deste novo Batman é aberrante, é passado de forma relativamente eloquente e
culmina no obrigatório confronto entre as duas versões do Cavaleiro das Trevas. Mas tudo é feito de forma tão competente e
divertida que parece que estamos defronte de um filme pipoca cujas longas horas
não parecem sequer passar por nós. Sem duvida, uma aquisição cinco estrelas
para a minha coleção de Batman. Agora
venha o primeiro tomo de 500 páginas da versão do personagem que
cronologicamente se seguiu: a da parelha Doug
Moench-Kelley Jones. Mal posso esperar!
Numa nota curiosa,
não pensem que a DC acordou após o sucesso
da Morte do Super-Homem e decidiu
fazer o que fez a Batman. Segundo
informações da altura, a Queda do Morcego
(como ficou conhecida entre nós) já estava a ser planeada ao mesmo tempo que a
do seu companheiro de combate ao crime. Tudo se resumiu a uma feliz
coincidência.
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