No final da década de 80, a casa mãe de personagens tão famosos como o
Super-Homem, o Batman e a Mulher-Maravilha, a DC Comics, vivia uma profunda revolução no formato da narrativa dos
seus personagens. O ano de 1986 (considerado por alguns como o melhor ano da
História da BD Americana) foi palco de importantes eventos nesta casa editorial,
com histórias como Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, The Dark Knight
Returns, de Frank Miller, e Crise
nas Infinitas Terras, de Marv Wolfman
e George Pérez. As duas primeiras
foram responsáveis pela assumida maturidade desta Arte, a terceira pela
reformulação do universo de super-heróis da DC
Comics. Neste panorama destacou-se a Senhora Editora Karen Berger, que tinha como missão recrutar novos autores para que,
com novos prismas, com pontos de vista mais adultos, ajudassem a revitalizar a
velha casa, seguindo a linha de Watchmen
e The Dark Knight Returns, que haviam
atingido impressionante sucesso crítico e comercial. Berger procurou do outro lado do oceano nomes que lhe pudessem
ajudar nessa tarefa, à semelhança de Alan
Moore e Dave Gibbons, ingleses, e
dentre esses autores surge um jovem de nome Neil
Gaiman, que viria a transformar-se num dos nomes mais sonantes da chamada
“invasão britânica” dos Comics.
A ideia para Sandman
surgiria de uma única imagem concebida pelo autor e da liberdade criativa que Karen Berger deu a Gaiman, ao lhe oferecer carta branca para usar o nome de um
personagem obscuro da década de 70 detido pela DC mas podendo criar um universo
e conceitos de raiz. Assim, da imagem “um
homem, novo, pálido e nú, prisioneiro numa cela, à espera que os seus captores
morram (...), morbidamente magro, com longo cabelo negro, e estranhos olhos”,
nasceu a história do Senhor dos Sonhos, o de muitos nomes, Dream, Morfeus, Sandman (em português o João Pestana),
que começaria em Outubro de 1988, duraria 75 capítulos até 1996 e que viria a
tornar-se numa das mais premiadas séries de BD de sempre, ganhado honras
inclusive fora do mundo dos Comics
como o World’s Fantasy Award em 1991
e o New York Times Best Seller List.
A importância de Sandman não
pode, de maneira alguma, ser diminuída. Não só introduziu a primeira série
longa de autor com um princípio, meio e fim (na altura, um feito raro numa Arte
controlada pelas intermináveis telenovelas dos super-heróis), como daria origem
a uma Imprint da DC, a Vertigo,
liderada por Karen Berger, que seria
a residência dos mais idiossincráticos trabalhos de autor, e que até hoje
continua a ser das maiores e mais literárias referências do panorama criativo
da BD mundial. Sandman seria também
uma das primeiras BD americanas em que os coleções dos seus capítulos (e são 10
no total) acabariam por tornar-se verdadeiros livros, sempre disponíveis,
ajudando à percepção de tratar-se de um trabalho finito e de autor.
A série foi também palco para o surgimento de inúmeros outros personagens,
tão famosos como o protagonista, dos quais obviamente destaca-se a irmã mais
velha, Death, uma antropomorfização sexy, gótica e infinitamente sábia da Morte,
que ajudaria a cimentar a profunda visão pessoal de Neil Gaiman. Os pedaços de sabedorias debitadas pelas aparições
esporádicas deste personagem são parte de algumas das mais memoráveis passagens
da obra.
Gaiman não se limita
a ser um mero contador de histórias, ainda que o execute de forma exímia, antes
imprime uma qualidade intelectual até ao momento com muito poucos exemplos na
BD americana. As frases que saem quer da boca dos seus personagens, quer das
longas descrições que ocorrem amiúde nos vários capítulos, são profundamente
citáveis, mantras capazes de transformar ou sintetizar vidas e pensamentos
(inclusive existe um livro chamado “The
Quotable Sandman: Memorable Lines from the Acclaimed Series”). Independentemente
de todas as hipérboles que se possam tecer acerca do trabalho de Gaiman em Sandman a realidade é que trata-se de uma obra sem par, que não só inspirou
a carreira de inúmeros autores como também marcou a vida de inúmeros leitores de
diferentes gerações. O meu livro favorito de sempre é Brief Lives, o 7.º da coleção, um dos poucos a que regresso
inúmeras vezes para procurar um pouco de sabedoria.
Sandman teve uma
tentativa de publicação em português de Portugal por parte da Devir, com a edição dos 1.º e 3.º volume
da coleção, mas infelizmente a editora ficou-se por aí. De qualquer modo, não é
demais enfatizar tratar-se de uma obra de enorme qualidade que se ganha muito lendo
no original.
Leitura essencial.
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