Quero contar-vos um segredo: a BD não é só para crianças. Talvez um dia tenha sido. Talvez isso fosse apenas uma insistência do senso comum. Mas a BD tem de tudo, como a farmácia. Tem histórias para crianças. Tem histórias para pré-adolescentes. Tem histórias para adolescentes. E para adultos. E dentro desta já incrível panóplia, tem histórias de todos os géneros e feitios, cuja variedade é apenas limitada pelo artista, pelo mercado e pelo editor. Prova disso são estes dois extraordinários exemplos de como a BD, como arte, é capaz de atingir níveis de excelência que não a colocam num gueto intelectual, mas antes a atiram para dentro do ringue das grandes obras de Literatura mundial.
A Levoir tem conseguido criar uma pequena tradição editorial em Portugal desde há uns anos a esta parte. A colecção Novelas Gráficas é, sem duvida, um dos momentos do ano para os amantes de BD e de Literatura. Tem não só conseguido trazer alguns dos mais relevantes autores a nível mundial, como algumas obras dos seus catálogos e que irão tornar-se incontornáveis no panorama nacional da nona arte.
Paco Roca é já um habitué, tendo já sido lançadas as obras Rugas e, pela própria Levoir, A Casa e O Inverno do Desenhador. As duas primeiras eram já exemplos da qualidade da arte deste autor espanhol (principalmente, para nós, A Casa), mas em os Trilhos do Acaso (publicado em dois volumes pela editora portuguesa) Roca atinge níveis que, alguns já o afirmaram, o colocam no mesmo patamar dos Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons. Estas comparações não têm outro objectivo que não sejam o da venda (nada de mau com isso), mas estas são obras completamente diferentes. Trilhos é uma espécie de documentário sobre um relevante momento da História dos nossos vizinhos, o do pós-Guerra Civil e da participação dos expatriados na 2.ª Guerra Mundial. Ficamos a saber da odisseia destes homens, após perderem o conflito para Franco e de como posteriormente perambulam pelo Norte de África e participam como combatentes à invasão Nazi - acabando por serem os primeiros a entrar numa Paris libertada. Roca imprime toda a sua arte e maneirismos, com as incontornáveis sequências cinematográficas, em que a "câmara" fica, por longos momentos, fixa num enquadramento que acompanha um acontecimento importante. Ao mesmo tempo, o que acontece é um misto de épico e de profundamente humano e trágico, numa análise desapaixonada (será?) da realidade do conflito humano. O autor consegue fornecer uma camada adicional de identificação, já que Trilhos é também o resultado da entrevista a um sobrevivente dos expatriados e combatentes da 2.ª Grande Guerra, num relato documental e biográfico de um herói e sofredor desconhecido.
Uma Irmã de Bastien Vivès é, em forma e conteúdo, bastante diferente de Trilhos. O autor, nascido em 1984 e de origem francesa, é conhecido na sua terra natal por não só enveredar pelo registo autoral, mas também pop. Tem conseguido transmitir diferentes tipos de sensibilidades, desde as mais viradas para o entretenimento, como Last Man, até outras de inclinação mais madura e sofisticada, como este maravilhoso Uma Irmã. Num registo que lembra cinema autoral europeu, Vivès envereda pelo campo minado do amor adolescente de Verão e do despertar sexual. O desenho suave, requintado, sintético, e a sua inclinação para expressar sentimentos através da ausência e da singeleza do traço, tornam a leitura tudo menos chocante, antes poética. Existe ligeireza, um sopro de ar quente de verão na forma como conta esta história de amor juvenil entre o pequeno Antoine, de 13 anos, e a filha de um casal amigo, Hélène, de 16 anos, ela assumidamente no auge do despertar da sua sexualidade. Os pais dela acabaram de sofrer um aborto espontâneo, à semelhança de, no passado, os pais dele. Ele poderia ter tido uma irmã mais velha e ela um irmão mais novo. Vivès balança-se nesta ténue corda para construir uma relação que, a princípio, é fraternal e que, paulatinamente, transforma-se em amorosa e depois sexual. Um livro intenso que acaba de forma surpreendente e bela, sublinhando o impacto vital que estas relações, aparentemente fugazes e imaturas, têm na vida futura.
Dois livros que merecem estar nas bibliotecas de qualquer amante de histórias e de Literatura. Essenciais.
2 comentários:
Desses só Uma Irmã foi o meu 1 contacto com Bastien Vivès e gostei bastante apesar de ser um pouco sexualizado e picante.
Uma Irmã é um enorme livro, na minha opinião. O Polina tb gostei, mas não tanto qt este.
O Trilhos do Acaso tb é gigantesco em qualidade.
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