O meu primeiro contacto mais sério com Mangá foi a obra Gunnm, da autoria de Yukito Kishiro - a maior parte do público conhece-a pelo nome de Battle Angel AlitaA publicação de Gunnm começou em 1990 e chegou às minhas mãos em 1995 pela editora francesa Glénat. Recentemente, decidi reler os primeiros nove volumes - a série continuou, mas a história de Alita (Gally em francês) fecha-se aqui na perfeição. 



Se temos de dizer algo acerca desta saga é que os nossos tempos têm corrido atrás da visão do autor. A série não envelheceu um dia e é assustadoramente profética. Uma espécie de Black Mirror antes de se pensar em internet ou smartphones. Neste nosso mundo, onde começam a aparecer ciborgues (vejam aqui), a história de Alita liga-o a um futuro repleto de complexas questões morais. O que nos faz humanos? O que nos torna diferentes da tecnologia que estamos a criar? É sequer essa a questão, já que a evolução do nosso corpo parece inevitável? Será este o advento do Homo Sapiens Tecnológico?

O tempo de Gunnm é um futuro pós-apocalíptico. A geografia é indeterminada mas centrada em dois pontos: uma cidade flutuante de nome Zalem, sonho dos que vivem em baixo, numa cidade de lata, onde os dejectos dos escolhidos são deitados como lixo. Aqui vivem vários humanos e robôs. Os humanos são agora ciborgues, fruto de sucessivas manipulações e melhorias para os transformar em melhores guerreiros, melhores desportistas. Permanece o cérebro, o seu "penso, logo existo", mas a carne foi substituída, total ou parcialmente. Neste mundo, um cientista descobre o corpo destroçado de uma ciborgue e reconstrói-o. É Alita, uma jovem com um passado de que não se recorda. Depressa descobre capacidades guerreiras inigualáveis e uma alma inquisidora, que a levarão a diferentes pontos deste mundo desolado e ultra-violento.

Escrito e desenhado por Yukito Kishiro, é uma obra essencial para os apreciadores de BD e do sub-género cyberpunk, do qual é dos maiores representantes, ao lado de outros como Ghost in the Shell. Aliás, tanto Gunnm como este último bebem da mesma sensibilidade e das mesmas questões levantadas por Philip K. Dick no seminal Do Androids Dream of Electric Sheep, que inspirou o filme Blade Runner. São obras que escolhem a tecnologia para questionar o que significa estar vivo e o que significa ser humano. Se este último filme vira para o lado filosófico, Gunnm não perde essa vertente de vista, mas opta por também ser uma imponente narrativa de acção. Porque planeada de forma cuidadosa, nunca perde o fulcro e o objectivo, mesmo que a vida de Alita percorra mais de 10 anos ao longo dos nove volumes. Aos poucos vamos descobrindo as várias camadas que compõe este mundo e a personalidade das várias personagens. No final, encontramos algumas respostas - mas não todas.

De acordo com Marc Attalah, professor de literatura da Universidade de Lausanne, "o autor faz parte da" geração Otomo", o autor de Akira. É uma geração que está cansada de estar sempre em contacto com a história pós-guerra do Japão, em que os idosos não se separam. Eles não viveram a guerra, eles querem distanciar-se dela. Isto é o que Gunnm mostra: Gally quer emancipar-se deste pântano. Trata-se de criar um novo homem, que usará tecnologia, hibridização tecnológica, para esses fins". E mais: "O cyberpunk americano é um género literário. No Japão, é uma relação com o mundo. Na Europa e nos EUA, o cyberpunk é interpretado como a tomada de consciência quando acontece algo de significativo com as novas tecnologias, e os problemas daí advindos. Mas para a geração Otomo, cyberpunk não é o mundo de amanhã, é aquele onde vivem estes jovens. Naquela época, a juventude japonesa era já hibrida com seu telefone". 

Gunnm é uma obra essencial de mangá cyberpunk mas também um repositório de questões actuais, neste mundo de tecnologia a avançar de forma vertiginosa ao encontro das mais escabrosas fantasias da ficção científica. 

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