(contém spoilers)
Esta não é a Mulher-Maravilha a que estão habituados. A versão é visceral e violenta, bebendo das lendas e mitos dos deuses gregos para além da filosofia do criador de Diana, William Moulton Marston. Existe mais guerra e menos paz. Gail Simone, uma das mais conhecidas escritoras da Mulher-Maravilha, diz não ser fã de uma modificação basilar ao mito de Diana introduzida por Azzarello: a mãe não a esculpiu do barro a que, posteriormente, os deuses deram vida. Diana é agora uma semi-deusa, nascida da luxúria entre Hipólita, a rainha das Amazonas, e Zeus, o Deus dos deuses. Segundo a autora, a introdução de um lado masculino na mitologia da Princesa Amazona diminui a mensagem feminista de Marston. Qualquer que seja o lado para que pendam, esta é a origem que passou para o cinema, pela realizadora Patty Jenkins.
Azzarello, ao introduzir uma nova versão do nascimento de Diana, modifica o mito e aproxima-o dos heróis e semi-deuses da mitologia grega, muitos deles nascidos das indiscrições do pai dos deuses. Todos sabemos de Perseu, de Hércules. Diana junta-se a eles, a uma linhagem que pertence à História da Cultura Ocidental e à Literatura Clássica - Homero e Ovídio ficariam orgulhosos. Azzarello reinterpreta a personagem e adapta-a ao seu olhar e é nesta perspectiva que a sua versão deve ser avaliada. Claro que isso não invalida os que se sentem defraudados pela interpretação desviar-se do que julgam ser essencial à personagem. Contudo, segundo a minha perspectiva, o que é basilar a Diana continua na versão de Azzarello.
Mais do que uma vez, Diana prefere o uso da conciliação e da não-violência para resolver um conflito. Quando confrontada com Hera, a deusa responsável, num assomo de ciúmes, pela transformação das suas conterrâneas e mãe em cobras e pedra, respectivamente, decide o caminho do perdão e da redenção (já agora, um aparte: Azzarello, consciente ou inconscientemente, alude às Metamorfoses de Ovídio, ao escolher o modo de castigo a que Hera recorre na sua vingança). Quando se vê forçada a casar com Hades, ela ilude o deus usando da sua inteligência e compaixão. Num momento que encapsula a sua motivação, Diana afirma "que ama todos", mesmo o deus dos infernos. Azzarello, por mais que pinte com as suas próprias cores esta narrativa da Mulher-Maravilha, não foge das bases da personalidade da personagem. Diana é uma força de amor, de poder guerreiro e, acima de tudo, uma personalidade resoluta. Cada passo é raramente noutra direcção que não seja para a frente. Sem dúvidas.
É nas intrigas entre os deuses do panteão grego que o escritor se centra. Desde cedo elimina do enredo tudo o que considera supérfluo ou redundante. Steve Trevor, o eterno namorado, não existe. As Amazonas são, como já o disse, retiradas de campo pela mão vingativa de Hera, a esposa desonrada de Zeus, o que está em acordo com a versão que todos conhecemos na História. A acção começa não só pelo abandono, por parte de Zeus, do trono do Olimpo, como pela gravidez e posterior nascimento de mais um bastardo deste deus, colocando a perpetuamente sofredora esposa como uma antagonista de Diana. Paralelamente, os filhos do Deus desaparecido, bem como Hades e Poseidon, seus irmãos, degladiam-se pelo trono abandonado. A Mulher-Maravilha é colocada neste palco, entre a defesa da mãe da criança, do seu meio-irmão, e as lutas palacianas. É arrastada para cada enredo e conluio contra a sua vontade mas depressa toma as rédeas do destino, não o deixando por mãos alheias.
O enredo irá culminar em dois eventos. Assistimos, desde cedo, à caminhada do First Born, o primeiro filho de Zeus e Hera, rejeitado pelo pai por, tal como com Cronos, ser o seu possível futuro assassino. Do conflito com este ser movido apenas pelo ódio, Diana ascende à divindade, ao matar o Ares, O Deus da Guerra (que nesta versão não é seu opositor mas mestre), e herdando o título. É aqui que Azzarello deixa vincada a sua marca, num claro desvio da mensagem de paz de Marston. Contudo, acredito que é apenas na forma, porque no cerne da personagem, esta transformação serve para sublinhar a mensagem pacífica de Diana. Nesta escolha do extremo oposto, Azzarello prova, pelos actos de compaixão levados a cabo pela Mulher-Maravilha, que ela é a escolha certa para a divindade da guerra e do conflito.
Para terminar um post já longo, não posso deixar de sublinhar o trabalho dos desenhadores, principalmente o de Cliff Chang e de Goran Sudzuka. Com uma linha minimalista e cartoonesca, são o complemento perfeito para a parcimónia e honestidade brutal das palavras de Azzarello. Fora fica o tom clássico de George Pérez, com a sua fiel e rebuscada pintura do mundo helénico de Diana. Themyscira, a ilha das Amazonas, assemelha-se mais às casas da Grécia moderna do que às representações idealizadas da antiga. Fora ficam as figuras de toga dos deuses gregos e surgem visualizações metafóricas e simbólicas dos mesmos. O Olimpo fica desnudado de arquitecturas escherianas e dá lugar à sobriedade e soturnidade do minimalismo.
A Diana de Azzarello, Chiang, Sudzuka e Adkins é a prova de que os arquétipos mais antigos podem ser re-imaginados, sem perder o seu núcleo e a sua mensagem. É a prova de que a Mulher-Maravilha é um dos mais perenes e primordiais.
Esta não é a Mulher-Maravilha a que estão habituados. A versão é visceral e violenta, bebendo das lendas e mitos dos deuses gregos para além da filosofia do criador de Diana, William Moulton Marston. Existe mais guerra e menos paz. Gail Simone, uma das mais conhecidas escritoras da Mulher-Maravilha, diz não ser fã de uma modificação basilar ao mito de Diana introduzida por Azzarello: a mãe não a esculpiu do barro a que, posteriormente, os deuses deram vida. Diana é agora uma semi-deusa, nascida da luxúria entre Hipólita, a rainha das Amazonas, e Zeus, o Deus dos deuses. Segundo a autora, a introdução de um lado masculino na mitologia da Princesa Amazona diminui a mensagem feminista de Marston. Qualquer que seja o lado para que pendam, esta é a origem que passou para o cinema, pela realizadora Patty Jenkins.
Azzarello, ao introduzir uma nova versão do nascimento de Diana, modifica o mito e aproxima-o dos heróis e semi-deuses da mitologia grega, muitos deles nascidos das indiscrições do pai dos deuses. Todos sabemos de Perseu, de Hércules. Diana junta-se a eles, a uma linhagem que pertence à História da Cultura Ocidental e à Literatura Clássica - Homero e Ovídio ficariam orgulhosos. Azzarello reinterpreta a personagem e adapta-a ao seu olhar e é nesta perspectiva que a sua versão deve ser avaliada. Claro que isso não invalida os que se sentem defraudados pela interpretação desviar-se do que julgam ser essencial à personagem. Contudo, segundo a minha perspectiva, o que é basilar a Diana continua na versão de Azzarello.
Mais do que uma vez, Diana prefere o uso da conciliação e da não-violência para resolver um conflito. Quando confrontada com Hera, a deusa responsável, num assomo de ciúmes, pela transformação das suas conterrâneas e mãe em cobras e pedra, respectivamente, decide o caminho do perdão e da redenção (já agora, um aparte: Azzarello, consciente ou inconscientemente, alude às Metamorfoses de Ovídio, ao escolher o modo de castigo a que Hera recorre na sua vingança). Quando se vê forçada a casar com Hades, ela ilude o deus usando da sua inteligência e compaixão. Num momento que encapsula a sua motivação, Diana afirma "que ama todos", mesmo o deus dos infernos. Azzarello, por mais que pinte com as suas próprias cores esta narrativa da Mulher-Maravilha, não foge das bases da personalidade da personagem. Diana é uma força de amor, de poder guerreiro e, acima de tudo, uma personalidade resoluta. Cada passo é raramente noutra direcção que não seja para a frente. Sem dúvidas.
É nas intrigas entre os deuses do panteão grego que o escritor se centra. Desde cedo elimina do enredo tudo o que considera supérfluo ou redundante. Steve Trevor, o eterno namorado, não existe. As Amazonas são, como já o disse, retiradas de campo pela mão vingativa de Hera, a esposa desonrada de Zeus, o que está em acordo com a versão que todos conhecemos na História. A acção começa não só pelo abandono, por parte de Zeus, do trono do Olimpo, como pela gravidez e posterior nascimento de mais um bastardo deste deus, colocando a perpetuamente sofredora esposa como uma antagonista de Diana. Paralelamente, os filhos do Deus desaparecido, bem como Hades e Poseidon, seus irmãos, degladiam-se pelo trono abandonado. A Mulher-Maravilha é colocada neste palco, entre a defesa da mãe da criança, do seu meio-irmão, e as lutas palacianas. É arrastada para cada enredo e conluio contra a sua vontade mas depressa toma as rédeas do destino, não o deixando por mãos alheias.
O enredo irá culminar em dois eventos. Assistimos, desde cedo, à caminhada do First Born, o primeiro filho de Zeus e Hera, rejeitado pelo pai por, tal como com Cronos, ser o seu possível futuro assassino. Do conflito com este ser movido apenas pelo ódio, Diana ascende à divindade, ao matar o Ares, O Deus da Guerra (que nesta versão não é seu opositor mas mestre), e herdando o título. É aqui que Azzarello deixa vincada a sua marca, num claro desvio da mensagem de paz de Marston. Contudo, acredito que é apenas na forma, porque no cerne da personagem, esta transformação serve para sublinhar a mensagem pacífica de Diana. Nesta escolha do extremo oposto, Azzarello prova, pelos actos de compaixão levados a cabo pela Mulher-Maravilha, que ela é a escolha certa para a divindade da guerra e do conflito.
Para terminar um post já longo, não posso deixar de sublinhar o trabalho dos desenhadores, principalmente o de Cliff Chang e de Goran Sudzuka. Com uma linha minimalista e cartoonesca, são o complemento perfeito para a parcimónia e honestidade brutal das palavras de Azzarello. Fora fica o tom clássico de George Pérez, com a sua fiel e rebuscada pintura do mundo helénico de Diana. Themyscira, a ilha das Amazonas, assemelha-se mais às casas da Grécia moderna do que às representações idealizadas da antiga. Fora ficam as figuras de toga dos deuses gregos e surgem visualizações metafóricas e simbólicas dos mesmos. O Olimpo fica desnudado de arquitecturas escherianas e dá lugar à sobriedade e soturnidade do minimalismo.
A Diana de Azzarello, Chiang, Sudzuka e Adkins é a prova de que os arquétipos mais antigos podem ser re-imaginados, sem perder o seu núcleo e a sua mensagem. É a prova de que a Mulher-Maravilha é um dos mais perenes e primordiais.
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