Grant Morrison: Teatro na BD (primeira parte)

(este artigo contem spoilers ao trabalho de Morrison em Animal Man, Kingdom, Final Crisis, Superman Beyond, e a histórias como Infinite Crisis, 52)

Começa com o homem que copia animais

Uma das imagens mais emblemáticas do trabalho de Grant Morrison em Animal Man (1988-1990) é a da personagem principal, Buddy Baker/Animal Man, a virar-se para o público, num close-up de página inteira do seu rosto, e a proferir as palavras "Eu consigo ver-vos!". A ideia não era nova mas na BD de super-heróis foi, à altura, surpreendente. A personagem descobria fazer parte de uma história impressa numa revista a duas dimensões. A quarta parede era quebrada de forma bem sonora. 

O local onde Buddy o descobre era, também em si, estranho: um Limbo do universo da DC Comics, uma dimensão para onde Morrison imaginava gravitarem os personagens esquecidos da editora. 
A mega-saga Crise nas Terras Infinitas (1985-1986) era recente na memória e Morrison, acabado de chegar à DC, decidiu, ainda assim, homenagear as triliões de vidas (ficcionais) ceifadas nesse evento. A Crise fora utilizada pela DC para "limpar a casa" e transformar a confusão pluri-universal (o Multiverso) num único e simples universo, fácil de entender para os potenciais novos leitores. Milhões de universos morreriam e triliões de vidas extinguir-se-iam. Pior. Nunca existiram.

Apaixonado pela Idade de Prata da DC (histórias de finais da década de 50, década de 60 e princípios da de 70), Morrison decide homenageá-la numa elegia meta-textual. Buddy Baker passava a conhecer a Verdade: as suas aventuras eram o resultado dos ditames editoriais e do totalitarismo de fãs que o liam mês após mês. O que tinha começado, no número cinco da revista, com uma versão do Will E. Coyote (o do Bip-Bip) a questionar Deus sobre a sua vida de sofrimento, acabava numa conversa com a verdadeira entidade divina na BD: o escritor. No final e num momento Deus Ex Machina, Morrison apaga todos os eventos catastróficos a que tinha sujeito a personagem, fechando a reflexão meta sobre a narração e o poder das histórias.

Desenganem-se se acham que o escritor ficar-se-ia pelas páginas do Homem-Animal. A história estava apenas a começar. Não quero afirmar que Morrison tinha um plano (é certo que não, já que era ainda muito novo no mundo da BD). Não falo de uma intenção consciente mas de uma temática transversal e autoral. São os tiques e as manias que acontecem de forma recorrente, como um leit motif numa ópera. Morrison faz parte dos autores que têm algo mais a dizer. Uma intenção. Um misto de inconsciência e crença. Pode não ser boa, podemos não gostar, mas ela existe.

O tempo que era hiper

No que respeita ao universo dos super-heróis da DC, Morrison parece construir uma cosmogonia muito própria e que tem sido abraçada, de forma mais ou menos relutante e mais ou menos consciente, pela editora. Depois de Animal Man, ele voltaria, anos mais tarde, ao universo convencional da DC com JLA, considerada por muitos como a interpretação definitiva da maior equipa de super-heróis do mundo ficcional da BD: a Liga da Justiça. Estas temáticas esotéricas não apareceriam nesta sequência de histórias mas dariam o ar da sua graça numa outra que Morrison ajudou a criar: Kingdom. Nesta, é dado o primeiro indício de uma ideia querida a ele e a outros escritores da editora, a de que todas as histórias da DC tinham de facto ocorrido, de que o multiverso não havia morrido na Crise. À altura chamaram-lhe Hipertempo. Pressupunha (e vou tentar ser simples) que existe uma linha temporal principal (imaginem o Tejo) e tributários e afluentes que entram e saem desse rio, ou que correm paralelamente a ele, influenciado o caudal com pequenas variações ou pura e simplesmente dando ar da sua graça, sem consequências de maior.

Esta ideia ficaria adormecida durante mais de uma década, com pequenas aparições em algumas histórias de uma ou outra personagem.



Uma e mais outra crise

O multiverso acabaria, finalmente, por regressar numa saga que nada tinha a ver com Morrison:  Infinite Crisis de Geoff Johns (2005-2006). Para além deste esperado regresso, Johns reintroduziu alguns personagens que os leitores DC não viam há 20 anos. Destacamos o que viria a ser conhecido como Superboy Prime. Esta versão jovem do Super-Homem era oriundo de uma Terra Paralela que existia antes da Crise nas Terras Infinitas chamada Terra-Prime. Esta versão do nosso mundo tinha uma peculiaridade: era mesmo o nosso mundo, aquele onde eu e tu e os escritores de BD da DC viviam. O Superboy Prime era o seu único super-herói, com os mesmos poderes do Homem de Aço e um conhecimento extra: era leitor assíduo das revistas da DC Comics publicadas na sua/nossa Terra. Geoff Johns transforma-o no vilão de Infinite Crisis e usa-o como comentário aos geeks da BD que a vivem e criticam de forma obsessiva. Não sendo uma criação de Morrison, Superboy-Prime partilha de algumas das suas (meta)manias. Voltarei a ele mais tarde.

Numa minissérie semanal que se seguiu chamada 52, era revelado que o multiverso era composto por 52 universos. À altura (2007) Morrison prometia explorá-los num trabalho futuro: chamar-se-ia Multiversity mas iria demorar nove anos a ficar completo. Antes teve tempo de escrever Final CrisisFinal Crisis era uma homenagem de Morrison à imaginação do Rei dos Comics, Jack Kirby, e às suas criações para o universo DC, principalmente os Novos Deuses e o maior adversário da tapeçaria da editora: Darkseid, o Deus Omega, O Aniquilador Definitivo. 

Numa minissérie paralela escrita por si e desenhada por Doug Mankhe, Superman Beyond, Morrison regressa aos conceitos que tinha introduzido em Animal Man, ao mesmo tempo que dava-nos alguns novos. Volta a visitar o limbo das personagens esquecidas (pelos leitores e escritores), mas desta vez com a sua favorita, o Super-Homem, que estaria predestinado a enfrentar, de acordo com esta narrativa, um mal absoluto, Mandrakk

Ao mesmo tempo, Morrison volta a visitar a noção de que o universo DC era criado/escrito num outro plano de existência (o nosso). Morrison liga esta Crise Final à Teoria-M da Física Quântica, que postula a possível existência de 11 dimensões (as nossas três, o tempo e mais sete - pelo menos é o que diz a wikipédia). Apesar da estranheza do conceito, interessa reter que qualquer universo pode ser a criação (e estar a ser lido) por um outro de dimensão superior. As nossas vidas podem ser as páginas de um livro. A ligação ao mundo da BD, lido em páginas coloridas, é óbvia. A noção de "quebrar a quarta parede" adquire uma nova interpretação. 

Uma curiosidade: esta BD era parcialmente lida em 3D, uma opção que era mais narrativa do que estética. O leitor e os personagens eram convidados a aceder a uma dimensão superior (a terceira) para conseguir ler a história.




Provavelmente já vos perdi mas existe ainda um outro conceito caro a este escritor e que é abordado, pela primeira vez, em Superman Beyond. Para Morrison as histórias são uma forma de acesso a uma dimensão superior, um reflexo de uma realidade além da percepção dos sentidos. Para acedermos a planos paralelos teremos de usar de linguagem nas suas diferentes formas, quer seja ela escrita ou cantada. Porque os universos são separados por diferentes vibrações, estes podem ser acedidos ao mudar o timbre de uma nota ou de uma canção.

O mal inominável que mencionei acima, o ser chamado Mandrakk, era também um Monitor Negro. Os Monitores são seres mais do que divinos que observam e preservam a realidade, a que chamam Orrery. Esta é uma estrutura metafísica que, segundo Morrison, alberga o Multiverso da DC. O opositor de Mandrakk era, acima de tudo, o super-herói original, o Super-Homem, mas também Nix Uotan, um jovem Monitor que, no final da Final Crisis, seria o último sobrevivente da sua espécie e subsequentemente exilado.

(to be continued eram as palavras no final de Superman Beyond, as que o Super-Homem escolheria para escrever no seu epitáfio. E são também as minhas até o próximo post sobre este assunto que só a mim interessa)

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