Era uma vez um prazer culpado. A série Once Upon a Time é subversiva?



A expressão "prazer culpado" é uma faca de dois gumes. Por um lado, afirmamos estar a desfrutar de algo de que gostamos - chegar ao ponto de encontramos o que nos dá verdadeira alegria é sempre uma vitória. Por outro, estamos a concordar que aquilo de que gostamos não será apreciado por uma imaterial figura, omnipresente, um juiz do "Bom Gosto". Esse, do alto de um longínquo Olimpo, poderá, caso digamos apenas "gosto porque acho bom", travejar violentos tornados que nos arrastarão, infectas criaturas,  para longe daqueles que "sabem das coisas". Que coisas são essas? Profundas, intelectuais, relevantes, tenho quase a certeza. Diversão pura e dura é que não serão. Isso é pecado.

Tudo isto para sentir-me confortável ao falar-vos da série de TV Once Upon a Time. Para quem não acompanha, dura à cinco temporadas e é uma variação de um tema já recorrente: os personagens dos contos de fada vivem no nosso mundo e passam por várias provações. Existem, claro, vários twists, sendo que um dos mais relevantes para o que vos quero aqui dizer é que estas são, na maior parte dos casos, as versões Disney desses contos de fada. Querem saber o que aconteceu à Branca de Neve, à Bruxa Má e aos Sete Anões depois do filme?  Vejam a série. A ABC, cadeia de TV que produz Once, pertence à Disney, daí a porquê desta continuação.

A série segue uma estrutura relativamente "formulaica" (perdoem-me o neologismo). Não existe grande avanço na arte da narração e o argumento repete-se ao longo das temporadas. Contudo, no que a mim diz respeito, a força dos personagens e os actores, em muitos casos, interessantes, conseguiram prender-me às cinco temporadas (a quinta acabou esta semana). O enredo é viciante e nonstop, com os protagonistas a saltar de uma aventura para a seguinte sem tempo para respirar, para comer e para outras necessidades fisiológicas que o bom gosto não deixa dizer.

Quase no final desta última temporada, apercebi-me de algo ainda mais interessante e até subversivo. Originalmente pode não ter sido essa a intenção (contudo, eu acho que sim) mas todos os protagonistas são femininos. As mulheres são quem avança a acção, quem decide as vitórias, sendo que os homens raras vezes são pouco mais que o "interesse amoroso", "o "damo" em apuros". A inversão é deliciosa e irónica, porque estamos a falar de uma das mais antigas formas de contar histórias da Humanidade, onde muitas eram as vezes em que cabia ao Príncipe, geralmente garboso e encantado, a missão de salvar a Princesa adormecida, presa na torre ou prisioneira de um dragão qualquer. A própria Disney construiu um império através da perpetuação desse mito. Ora aqui não. Elas é que os salvam das torres.

E o beijo que acorda o amor adormecido, eterno cliché dos Contos de Fada? Nesta temporada, este enredo foi usado para algo (claro que no contexto do que aqui vos falo) subversivo: o primeiro beijo homossexual da série (spoilers a partir daqui). A Capuchinho Vermelho usa o seu amor para acordar a Dorothy do Feiticeiro de Oz (qualquer dia o Alan Moore vem dizer que lhe roubaram a ideia do seu Lost Girls). Temos de perceber que, no contexto da Disney, este é provavelmente ainda mais relevante. A empresa é conhecida por abordagens tradicionais dos relacionamentos, quer amorosos, quer familiares. Permitirem que numa série que usa as suas princesas e onde personagens bastante conhecidos do mainstream possam ter uma relação homossexual é, no mínimo, interessante. Quem sabe é um teste para que o próximo Frozen tenha também uma personagem gay, como já se anda a suspeitar.

Acho tudo isto maravilhoso.

Contudo, no final do dia, o que realmente interessa é que a série diverte-me a rodos. Que mais posso pedir? Desde que o juiz do "bom gosto" não apareça para flagelar-me acho que é mais que suficiente. 

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