A culpa é do Homero e de ter transformado a viagem literal em metafórica. A Odisseia levava-nos de um ponto A a um ponto B e, ao mesmo tempo, ia aludindo o universo mais real, mais nosso. Isso transformou-se, de uma forma ou de outra, na essência da arte de contar histórias. Ao longo dos séculos e dos milénios que se lhe seguiram, muitos foram os que reproduziram as pegadas (há quem diga todos), copiando, elogiando, plagiando, transformando. Uns, como Altarriba e Kim do fabuloso A Arte de Voar, pegavam num outro estilo, o do relato biográfico e autobiográfico, e contavam a história de outro tipo de viagem, a da vida. No anos que vão passando, de forma subtil, enquadram o mundo inteiro (ou uma parte substancial dele) na pequena casca de noz que é apenas mais uma vida, mais uma pessoa, mais uma personalidade. Assim é o pai de Altarriba, sobre o qual é erigido esta fabulosa peça de arte, um conto que começa no princípio do século XX da Espanha, estende-se para a Guerra Civil e para o advento do Franquismo, para a sua inevitável queda e culmina na morte do progenitor do autor. Aliás, Altarriba expurga o evento traumático que é o suicídio do pai já em idade avançada, através deste livro que conta, de uma forma factual e ao mesmo poética, toda uma vida dura, oposto de mimada. A Arte de Voar continua no estilo inaugurado (ou aprimorado) por Maus de Art Spiegelman, esquecendo as roupagens metafóricas do desenho deste último (os judeus como ratos, os nazis como gatos) e escolhendo antes uma abordagem mais, como já disse, factual.
Oposto a este estilo temos A Viagem de Edmond Baudoin, que escolhe transformar a viagem literal numa coleção de alegorias e metáforas escritas e desenhadas com grande beleza. Um homem escolhe abandonar a sua família, um filho que adora e uma mulher castradora e passivo-agressiva. Com uma cabeça cheia de necessidade de liberdade (ao ler o livro vão perceber este fraseamento tão curioso) o protagonista de A Viagem parte ao caminho de literal descoberta, um caminho que tantos já esperançamos fazer mas que muitas vezes adiamos por esta ou aquela razão. O autor, ao escolher o abandono máximo, o de um filho, sublinha a urgência da viagem. Por mais que as circunstâncias nos tenham criado obstáculos aparentemente intransponíveis é necessário suplantá-los para que construamos um eu melhor e mais verdadeiro, o que acaba por ser, naturalmente, o objetivo deste viagem (e, se calhar de todas). Escondido por detrás de um acto hediondo é possível encontrarmo-nos. Tudo tem um preço. Até a auto-descoberta.
Ambos os livros fizeram parte de uma das mais essenciais coleções que saíram neste ano de 2015 em Portugal. E não estou a falar de Banda Desenhada. Qualquer pessoa que se diga apreciadora de Arte tem a obrigação de folhar e ler cada um dos volumes que saíram nesta coleção de Novelas Gráficas de Levoir (já aqui falei de os Contos de Sharaz-De e o Diário do Meu Pai). A Arte de Voar e A Viagem são, sem sombra de dúvida, dois dos grandes livros que tive o enorme prazer de ler este ano. Absurdamente essencial para todos os apreciadores do Belo. E eu acho que acho que o somos todos.
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