A vida privada é um segredo que muitos
optam por guardar. O artista, por seu lado, tem dificuldades em que assim seja.
Mesmo que indiretamente, por intenção revelada e não declarada, acaba por
verter as suas experiências e pontos de vista para a forma de expressão artística
que (o) escolheu. Riad Sattouf é o caso de um homem de coragem, do estilo de
artista que escolheu explanar a sua vida e, mais importante, um ponto de vista
sobre a sua vida para a folha de papel, neste caso a Banda Desenhada. Não é o
primeiro, claro. Lembro-me de exemplos óbvios como Satrapi com Persépolis, Thompson com Blankets ou as primas Tamaki com This One Summer. Aliás, estas autobiografias
têm mais do que apenas essa linha de código genético em comum. Fazem parte de um
tipo de BD já robusto, onde os autores constroem uma análise profunda da sua
vida ou de um episódio da sua vida usando não só a linguagem da 9.ª Arte como também
de uma linha de desenho mais cartoonesco (dos quais este L’Arabe do Futur e Persepolis
são bons exemplos) ou estilizada (Blankets
e This One Summer) – não deixa de ser
curioso que os dois primeiros são árabes residentes em França e os segundos oriundos
do continente norte-americano (Thompson dos EUA e as Tamaki do Canadá).
L’Arabe du Futur volume 1 (o segundo já saiu em França)
concentra-se na infância do jovem Riad, mais precisamente entre 1978 e 1984,
quando os pais, ele Sírio e ela Francesa, decidem, por iniciativa e insistência
do primeiro, em viver na Líbia e depois na terra natal do progenitor. L’Arabe du Futur será uma trilogia,
focando-se nos 13 anos da vida do autor passados no Médio Oriente, quando o
patriotismo do pai os obriga a viver num mundo pelo qual nutre particular
esperança e obstinada reverência. Existem dois aspetos que acho particularmente
interessantes abordar. Primeiro, a questão de Riad ser um árabe de cabeço loiro,
o que oferece a narrativa a momentos de humor, que contrastam com a vida na
Líbia e Síria, constrangedora nos momentos mais leves e claustrofóbica nos
piores. Por outro lado e complementarmente, o estilo de desenho cartoonesco oferece
ao leitor um distanciamento aliviante face à situação que é muitas vezes desassossegada
ao olhar, principalmente quando a comparamos com as informações que temos em relação
ao fanatismo religioso islâmico bem como aos desenvolvimentos recentes nos dois
países onde esta família viveu. Mas essa escolha estilística acaba, emocionalmente,
não por afastar-nos mas aproximar da narrativa e da experiência de Riad, imerso
num pai que parece cego ao desfile de misérias que se lhe passeiam pela frente
e a uma mãe que, aparentemente, é distante. Contudo, desenganem-se se acham que
Sattouf isenta a França do seu olhar irónico e satírico. Ainda que esses episódios
sejam, neste primeiro volume, pequenos, ele não deixa de analisar de forma
caustica algumas experiências passadas na terra natal da mãe relacionadas com família
e com o modo como tratam-se outras pessoas - o episódio da velhota solitária é
particularmente pungente, quando comparado com o modo como os idosos são
tratados e vistos no Médio Oriente.
Esta é sem dúvida uma das BD do
ano (ou não tivesse ganho o prémio máximo na Angoulême 2015) e, numa excepção
que seria bom ser a regra, acabou de ser publicada em Portugal pela Teorema. Uma
adição salutar à biblioteca lusa que aconselho mais que vivamente. Leitura
obrigatória.
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