É fácil ficar distante do abismo ou Rapidinhas de Cinema – Rage de Sally Potter e Nightcrawler de Dan Gilroy


Aposto que Nietzsche não contava com a existência da TV e do Cinema quando falou do abismo devolver o nosso demorado olhar. Ou, se calhar, contava. Tantas são as vezes que nos tornamos insensíveis ao desfilar de horrores ou, mais comummente, ao expor das mais abjetas porções do espírito humano. Assistimos e assistimos e demoramo-nos e deleitamo-nos com o carnaval de personalidades sociopatas, ao ponto de as acharmos coloridas e, pior de tudo, divertidas e até toleráveis. Com o rodopio infinito de imagens e a alimentação de notícias e variedade de factos somos subterrados por experiências que há menos de 50 anos eram apenas imaginadas pelas mentes mais férteis. A Literatura era uma das privilegiadas janelas para o mundo, mas a imagem tem um poder que a palavra escrita, por mais maravilhosa que seja (e é a mais maravilhosa das artes), não consegue suplantar. O imediatismo da absorção da imagem é inacreditável. Uma experiência sem a chatice da proximidade física. Um aconchego para a revolta socialmente aceitável mas agradavelmente distante dos factos.

Tudo isto para vos falar destas duas obras da arte de fazer Cinema: Rage de Sally Potter e Nightcrawler de Dan Gilroy. O primeiro é uma experiência interessante de fazer a 7.ª Arte. A realizadora concebe uma história ambientada no mundo da Moda, onde um documentarista de nome Miguel Ângelo entrevista vários intervenientes num desfile. O filme é integralmente feito na base do talento dos diálogos e performance dos actores, já que não existe acção, apenas relato da acção. Um conto subjectivo do que acontece ao lado do enquadramento da câmara. A história é uma janela para o mundo da vaidade e da indústria que ganha dinheiro com ela. Os actores são quase tudo e desfilam aqui nomes impressionantes: Steve Buscemi, como um fotógrafo que acredita que a guerra é a única experiência válida; Jude Law como travesti que finge ser de um qualquer país eslavo mas, na realidade, é americano; Judi Dench, a mordaz crítica de moda que vai ter um duro acordar para a realidade verdadeira, perdoem o pleonasmo; isto para citar apenas os mais conhecidos. Um filme interessante ainda que nem sempre atinga os níveis de excelência que promete.


Nightcrawler é uma das pérolas do ano passado (obrigado, Léolo) que deveria ter visto em sala de Cinema e não o fiz. Jake Gyllenhaal anda a habituar-nos a incríveis prestações mas, mais importante, esta preciosidade de argumento e realização é uma pequena-grande metáfora do que estamos dispostos para chegar ao topo e, mais do que isso, em como não nos importamos com os actos mas apenas com as consequências (as boas, claro). A validação que encontramos para perpetuarmos as nossas acções, quer seja pelas circunstâncias em que estávamos e a que queremos chegar, quer seja por nos considerarmos merecedores. Aproveitamos todas as emoções, nossas e dos outros, boas e más, e como vampiros (o filme passa-se quase sempre de noite) vamos predando todos à nossa volta. Destruindo tudo à nossa volta, excepto nós mesmos (sim, não existe aqui nenhum conto de arrependimento). O filme é uma brutal e desapaixonada viagem ao mais podre que o espírito humano é capaz. E tudo pela mais lícita das razões: sobrevivência. 

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