Sally Mann: o outro lado das fotos de família

Quando os filhos de Sally Mann olharem para o livro de fotografia “Immediate Family”, obviamente que o vão ver de uma forma muito diferente da nossa. Nele vão ver um álbum de família como nenhum outro. Um passado. Uma declaração de amor de uma mãe a uma família, a uns filhos a quem dedicou a atenção da película fotográfica. A quem dedicou o olhar da luz e da sombra.

Sally Mann é uma fotógrafa norte-americana nascida no ano de 1951 em Lexington, na Virginia, sendo conhecida pelo seu trabalho a preto e branco e muito particularmente por este seu livro, editado em 1992, imediatamente acusado de promover a pornografia infantil com a mesma intensidade com que mais tarde viria a ser laureado como um dos melhores e mais íntimos trabalhos de fotografia já produzidos.


Esta foi a primeira fotografia que vi de Sally Mann. Uma imagem, de facto, vale mil palavras, mas a questão é que palavras serão essas? Vemos o quê nesta fotografia, se não temos nenhuma informação sobre a mesma, o que era o meu caso? Tive a impressão de tratar-se de uma rapariga já marcada pelos anos, cigarro em punho e a olhar acusadoramente para o fotógrafo. Poderia estar ela a quebrar a quarta parede e a tentar falar connosco?

Neste momento, contudo, sabem mais do que eu quando a vi pela primeira vez. Sabem tratar-se de uma foto do livro de que me propus falar e de que pode ser uma das filhas que Sally Mann capturou em negativo. Mas o que não sabem é que o nome da foto é “Candy cigarrete”.

As fotos deste álbum ultrapassam a simples parada de imagens dos filhos da fotógrafa. A normalidade familiar, pelo olhar de Sally Mann, transcende-se e acentua a sua pura simplicidade. Por vezes entram no campo do metafísico e do imaterial. Não existem regras no abandono dos corpos nus das crianças, expostas às brincadeiras bucólicas do Verão, ao ar, à água e à terra que os recebem num misto de afastamento e simbiose. Entrámos num lugar parado no tempo e no espaço, um fascimile do Jardim do Éden, novamente habitado pela inocência e pureza dos corpos sem restrições, inibições, sem religião, códigos morais, apenas as pequenas brincadeiras entre irmãos e amigos, a preguiça de ler os cartoons domingueiros, o simples dormir numa cama abandonada no canto da casa.



As imagens de Sally Mann neste impressionante livro provam a força da arte da Fotografia, em como através do real consegue chegar-se às fronteiras do invisível. Por exemplo, na foto “He is very sick”, o título é profundamente taxativo, como se a imagem se limitasse a mecanicamente descrever uma realidade corriqueira. Mas na imagem, em segundo plano, na cama do doente, pouco mais distinguimos que uma mão e um olhar imersos numa cortina de luz e, nesse momento, o título dado por Mann adquire uma diferente dimensão, como se a autora não quisesse coagir a mais nenhuma leitura que a da própria “clareza” da fotografia. A interpretação que Mann faz das luzes e da sombra na ampliação da sua fotografia transcende o real, ao mesmo tempo que o não perde.



Noutras, pela clareza do que é representado na imagem, Mann parece não querer deixar espaço à interpretação, ao mostrar os corpos e as caras dos seus filhos em posições e situações meramente “fotográficas”: “Emmet, Jessie and Virginia (1989)”; “Emmet and the White Boy (1990)”; “Coke in the Dirt (1989)”.

Sally Mann acaba a sua apresentação com duas fotos que mostram o fim deste Jardim do Éden, com o fogo-fátuo da vida adulta a imiscuir-se na inocência dos dias de Verão. A primeira é “Candy cigarrete”, de que aqui já falei. A segunda assume a sua importância no contexto do álbum com um título curto, grosso mas revelador: “The last time Emmet modeled nude (1987)”. Há espaço para vislumbrar uma dose de nostalgia por parte da autora face ao passado que ali termina (apesar de existirem fotos de Emmet com data posterior), ao mesmo tempo que assume a passagem dos filhos para um lugar diferente daquele que o álbum espera retratar. Sally Mann decide assim fechar a mostra da repetição dos dias de veraneio familiar. Sem um ponto final mas antes com inconclusivas reticências.

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