Os Malditos vol. 1: Antes do Dilúvio e Moonshine vol. 1: Sangue e Whiskey (G Floy)



A editora Image tem conseguido uma revolução silenciosa ao longo dos últimos anos. Captou alguns dos maiores nomes da BD das Terras do Tio Sam e produzido obras incontornáveis. Não só isso, mas dentro das suas fileiras consta um dos maiores cultos da cultura pop dos últimos anos: The Walking Dead. Graças à reputação criada, nomes geralmente associados à Marvel ou à DC têm gravitado para a Image.  É o caso de Jason Aaron e R. M. Guéra com Os Malditos vol. 1: Antes do Dilúvio e Brian Azzarello e Eduardo Risso em Moonshine vol. 1: Sangue e Whiskey, ambos publicados pela editora portuguesa G FloyEstas duplas são conhecidas de outros vôos, nomeadamente da publicação, pelo selo da emblemática e lendária Vertigo, de Scalped e 100 Bullets, respectivamente. 

A escrita de Azzarello e Aaron, ainda que particularmente diferente na forma, partilha de um mesmo código genético. É seca e dura como a areia do deserto. As personagens são arquitectadas com personalidades a quem o mundo nunca escondeu a face mais negra.  Munidas de palavras directas e cruelmente honestas, a sua moralidade é, regra geral, afirmadamente ambígua. Na pena destes escritores não sabemos se estamos a ler a história de um herói ou de um vilão - no sentido moral do termo. Já assim o era em Scalped e continuou mesmo em Wolverine e Thor, no caso de Aaron, e em 100 Bullets e Hellblazer, quando falamos de Azzarello. Os anti-heróis destes dois artistas vêm do âmago de cada, das suas expectativas e das suas crenças. E este é o melhor local de onde gerar personagens.

Risso e Guéra são colaboradores experientes destes escritores, habituados, em tom simbiótico, a passar para desenho o ambiente sujo das narrativas. Quer falemos do constante chiaroscuro do primeiro ou do esboço-sujo-mas-realista do segundo,  estamos a apreciar dois desenhistas de topo na arte de fazer BD. A relação entre estes pares é só, por si, o suficiente para compramos estes livros. Ainda assim, insistem em dar-nos (outra vez) obras incontornáveis.

Azzarello e Risso voltam atrás no tempo, para o final da década de 20 dos EUA, na altura da depressão e da lei seca, onde criminosos e personalidades menos solarengas pareciam multiplicar-se. É o casamento perfeito com as sensibilidades de ambos os autores, noir do átomo do cabelo (cheio de brilhantina) à molécula da unha do pé (negra e ressequida). Existem produtores de whiskey (ou bourbon) clandestinos, homens com passado nebuloso, mulheres fatais, hillbilly's sanguinários, gangsters violentos... e lobisomens. Que mais pode pedir-se a estes dois autores? Nada, excepto: bem-vindos de volta. 

Aaron e Guéra escolhem um tema bem diferente da história de Scalped, que era The Sopranos passado em ambiente nativo-americano. Agora entramos pelo terreno bíblico e acompanhamos a narrativa do primeiro filho caído, o criador do assassinato, Caim. Num mundo selvagem e violento que faz a Ciméria de Conan, o Bárbaro parecer a Ilha dos Amores, o protagonista irá ter de se defrontar com outro personagem bíblico de renome, Noé,  e descobrir a melhor forma de atingir o seu maior desejo: morrer. Amaldiçoado com a imortalidade, este Caim lembra a interpretação que Saramago também fez do mesmo, com mais sangue e vísceras, mas com o mesmo desdém e ódio pelo Deus que o condenou a esta morte em vida.

A editora portuguesa G Floy continua a minar o riquíssimo catálogo da Image e a dar-nos algumas das melhores obras de ficção modernas. Uma mistura de herança e de actualidade. A bem ver, a Image é uma das dignas herdeiras da enorme Vertigo. E que melhor forma de homenagear esse legado do que trazer novas colaborações destas duas duplas históricas?

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