Cada vez que leio um Mangá de Kazuo Kamimura lembro-me de um conterrâneo seu, o cineasta Kenji Mizoguchi. Ambos apresentam as mesmas obsessões. Esta partilha é tanto mais curiosa quanto melhor conhecemos a sociedade japonesa e especificamente tudo o que está relacionado com as mulheres. Os japoneses (como aliás muitos povos, inclusive o nosso) tiveram de forma continuada comportamentos misóginos. Ainda no século XX, este pendor manifestava-se de forma clara em terras nipónicas, com uma forte estratificação de papéis e posição social. Essa clausura, esse cerco, que a sociedade japonesa fazia (e faz) ao sexo feminino, foi de tal forma tema na obra de Mizoguchi que transformou-se numa assinatura autoral. Na maioria dos seus filmes, escolhia o ponto de vista feminino para contar as histórias ou, não sendo explícito nessa escolha, procurava temáticas que focassem a injustiça de que o género era alvo - quer falasse da sua contemporaneidade, quer da antiguidade (leiam o que escrevi sobre este realizador aqui). Kazuo Kamimura partilhava deste ponto de vista ou, pelo menos, assim o parecem demonstrar alguns dos seus livros e, especificamente, este Aprendiz de Gueixa (infelizmente inédito no nosso país).
Um dos temas mais queridos a Mizoguchi eram as gueixas de Kyoto, tendo dedicado alguns filmes a estas. Kamimura, neste seu livro, viaja para norte e para Tokyo, para relatar, de forma episódica, o percurso de vida de uma jovem gueixa, O-Tsuru, desde os primeiros anos como aprendiz até transformar-se numa gueixa renomada e apreciada. Ao longo de mais de 300 páginas e 14 capítulos, o autor de Mangá irá não só focar-se no percurso e manias da jovem protagonista mas também de todo um mundo à sua volta. Desde a patrona da casa de gueixas até aos homens que passam pelo seu caminho. Estes são observados do ponto de vista da jovem simultaneamente com carinho e com um olhar distante. Os comportamentos e atitudes dos homens devem ser julgados pelo peso da subjectividade histórica ou sobre um olhar mais específico, mais humano?
Kamimura balança de forma elegante entre a sexualidade e a tristeza deste mundo, com o qual poderá ter contactado quando alugava um escritório num mesmo edifício de um conhecido bairro de gueixas em Tokyo. Esse equilíbrio é conseguido pela estrutura das histórias e pelo enredo, que estão cheios de um sabor agridoce suave e discreto mas, paradoxalmente, pungente e sublinhado. O seu traço ondulante e quase etéreo é perfeitamente adaptado a este mundo de sexo e lágrimas, conferindo uma terrível e terrena poesia a actos sobre os quais temos dificuldade em descortinar a bondade ou maldade dos mesmos. Kamimura não procura respostas moralistas ao mundo das gueixas, deixando que as histórias e o seu traço falem por si - como qualquer contador deveria fazer.
Kazuo Kamimura foi um mestre que abandonou-nos cedo demais (aos 45 anos). A sua obra é repleta das obsessões que constroem o trabalho autoral. Mas é no produto final, nas linhas do desenho e na escolha das palavras, que se vislumbra o génio que é imperativo conhecer. Não só um autor de Mangá obrigatório mas também de uma literatura que importa não esquecer.
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