Ciclo Kenji Mizoguchi no cinema Nimas em Lisboa



Está quase a terminar um dos eventos cinematográficos do ano (da década?) em Lisboa: a exibição, no Nimas, de nove filmes de Kenji Mizoguchi. Está longe de ser uma incursão exaustiva mas é uma mais que merecida, essencial para conhecer a História do Cinema mas, e acima de tudo, histórias intemporais e gigantes. Oportunidade para entrar no pensamento de um realizador que elevou a 9.ª Arte sem a tornar inacessível. É como se Mizoguchi seguisse (sem o sequer considerar) a linha de pensamento de Tolstoy no seu O Que é a Arte? Os filmes do japonês podem (e, acima de tudo, devem) ser apreciados por qualquer pessoa, qualquer credo, religião, geografia. No que a mim diz respeito, estamos na presença de uma das mais admiráveis figuras da cultura mundial.

Qualquer palavra ou elogio que possamos escrever irá parecer desnecessária e pequena. O que interessa é submergirmos na imagem, no enredo e nas personagens de Mizoguchi. Será melhor começar no Mizoguchi feudal, o dos Contos da Lua Vaga, dos Amantes Crucificados, do Intendente Sansho, d'A Senhora Oyu, d'O Conto dos Crisântemos Tardios? Ou será melhor o Mizoguchi da sua época, o de Festa de Gion, d'A Rua da Vergonha, d'A Mulher de quem se Fala? Pouco interessa. Tudo é extraordinário e, mais, tudo é sobre o mesmo homem. 

Os grandes artistas têm (quase) sempre manias. Temas recorrentes. Obsessões. As de Mizoguchi centram-se nas mulheres e na estratificação social. Ou melhor, no Japão, essa geografia (omni)presente na temática do realizador (por razões óbvias e outras nem tanto). Dizer que este país é um lugar estranho é resumir aquilo que não pode ser resumido. É necessário entrar na História de uma ilha que chegou a isolar-se do mundo durante três séculos, para estar sob o jugo de um Shogunato implacável e ditatorial que marcou indelevelmente uma sociedade que, ainda hoje, é reflexo desse regime.  Por mais mistificante e atraente que o Japão seja hoje, ele é produto de algo e Mizoguchi não poupa-se a tentar encontrar esse "algo", ou melhor, a explicá-lo e a expô-lo, com narrativas lineares mas profundamente pungentes e sociais. O realizador não escolhe o caminho do floreado. Para relatar a história, escolhe o directo, a simples estrutura de um conto, mas é nos elementos desta, no enredo, nas personagens, que foca-se nos temas que lhe são caros.

A estratificação social rígida do Japão é, em filmes como Os Amantes Crucificados, Os Contos da Lua Vaga ou O Conto dos Crinsântemos Tardios, um dos elementos mais marcantes, sendo ao mesmo tempo o móbil da narrativa mas também o seu enfoque, com uma critica que nota-se porque Mizoguchi escolhe os momentos de forma declarada mas subtil. Quer seja no período Edo (o do Shogunato), quer na década de 50, a rígida e quase inconquistável estratificação social é omnipresente. Sair dessa prisão (que perpetua-se nas gerações) é impossível, segundo Mizoguchi.

Mas são as mulheres a maior fixação do realizador, pelo menos no que nestes filmes diz respeito. Quer sejam as protagonistas, em películas como Festa de Gion, A Mulher de Quem se FalaA Imperatriz Yang Kwei Fei, quer sejam mais um dos elementos da narrativa, como em Os Amantes Crucificados, Os Contos da Lua Vaga ou O Conto dos Crinsântemos Tardios, Mizoguchi escolhe expor a condição do sexo feminino no Japão. Ora sacrificada, ora submissa, ora cingida à condição de gueixa (outra recorrência nas suas narrativas), não deixa de ser uma força que apaixona o lado humano e social deste realizador. Existe uma cruzada e uma militância que se explica pela sua história de vida, de um pai alcoólico que vendeu a filha para ser gueixa. Existe em cada poro da narrativa e da realização. Mas desenganem-se se pensam estarmos a olhar para um outro mundo e uma outra época. Não existe aqui distanciamento. Mizoguchi é verdadeiramente universal e intemporal.

O ciclo irá, a partir do próximo dia 22 de Junho, repor todos os filmes para os possam rever ou ver. Um dos acontecimentos culturais do ano, imperdível e essencial. 




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