Agarrar num romance e fazer dele
aquilo que bem se entende, tornando-o em algo verdadeiramente novo, é reservado
a poucos. Stanley Kubrick fê-lo com 2001
e The Shining e, agora, Glazer fê-lo com
Under the Skin. Não li a obra na qual
este filme se baseia mas, pelo que me foi dado a entender, a base é similar mas
a interpretação é completamente diferente. Em ambas, uma fêmea alienígena seduz
homens nas ruas da Escócia para os consumir. Enquanto no livro esse facto é literal
(o ser humano, especialmente o masculino, é uma iguaria gourmet), no cinema
este processo é descrito de forma onírica. Também no livro, a protagonista tem
nome e é claramente identificada a sua origem. Novamente, na obra de Glazer, o
nome é esquecido e a proveniência é ao mesmo tempo clara e difusa. Isto para
falar apenas no conteúdo e não na forma.
A narrativa desenvolve-se no etéreo
da incerteza e também, paradoxalmente, do realismo. As cenas em ambiente alienígena
incutem um sentimento de estranheza, desconforto e ansiedade – são elas a
transformação de extraterrestre para humana, que ocorre logo na fabulosa sequência
de abertura, e o “processamento” dos humanos capturados. Por outro lado, o
restante filme é enquadrado na dureza do realismo, típico de filmes britânicos.
As paisagens são austeras, os personagens severamente humanos. Um pormenor
interessante da filmagem foi o facto de boa parte das cenas de sedução de
Scarlett Johansson (numa brilhante interpretação) serem reais. Glazer e a
equipa montaram várias câmaras numa carrinha na qual Johansson circulava
livremente pelas ruas da Escócia, numa curiosa inversão do modelo reality show. Com uma peruca negra,
roupas trashy e lábios garridamente
vermelhos consegue preservar o anonimato e sair em busca de “presas”. Com a devida
autorização, algumas dessas filmagens foram incorporadas no filme, contribuindo
para o todo realista-onírico que constrói a atmosfera do filme.
Este não é, de todo, um filme fácil.
A narrativa, apesar de relativamente linear, serve um ambiente opressor, negro,
desesperante. As cenas desenvolvem-se como no provérbio do gato e do rato, um predador
inexoravelmente na busca da vítima. Uma destas em particular, que envolve um
casal, o filho bebé, um cão e um surfista, é um dos momentos mais arrepiantes
de todo o filme – julgo não ser para os de coração fraco. Contudo, esta não é uma
história que se cinja ao mote da caça, antes pelo contrário. O título é a pista
mais importante para o que o realizador e o argumentista nos querem revelar,
uma temática mais universal, obviamente, o que se esconde por debaixo daquilo
que revelamos para o mundo exterior e para os nossos pares. Nessa senda, a
figura de Johansson é um personagem verdadeiramente trágico, ao descobrir que
existe uma relação mais profunda com as suas vítimas que a de predador / presa.
Ou melhor, que aqueles que “consome” têm alma e, assim, a distância de anos-luz
que os separa encurta-se para milímetros. Essa redenção é a sua perdição, como
em tantos outros personagens da mesma matriz. Um filme brilhante onde a frase “primeiro
estranha-se e depois entranha-se” é mesmo aplicável.
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