Under the Skin de Jonathan Glazer (Debaixo da pele)


Agarrar num romance e fazer dele aquilo que bem se entende, tornando-o em algo verdadeiramente novo, é reservado a poucos. Stanley Kubrick fê-lo com 2001 e The Shining e, agora, Glazer fê-lo com Under the Skin. Não li a obra na qual este filme se baseia mas, pelo que me foi dado a entender, a base é similar mas a interpretação é completamente diferente. Em ambas, uma fêmea alienígena seduz homens nas ruas da Escócia para os consumir. Enquanto no livro esse facto é literal (o ser humano, especialmente o masculino, é uma iguaria gourmet), no cinema este processo é descrito de forma onírica. Também no livro, a protagonista tem nome e é claramente identificada a sua origem. Novamente, na obra de Glazer, o nome é esquecido e a proveniência é ao mesmo tempo clara e difusa. Isto para falar apenas no conteúdo e não na forma.

A narrativa desenvolve-se no etéreo da incerteza e também, paradoxalmente, do realismo. As cenas em ambiente alienígena incutem um sentimento de estranheza, desconforto e ansiedade – são elas a transformação de extraterrestre para humana, que ocorre logo na fabulosa sequência de abertura, e o “processamento” dos humanos capturados. Por outro lado, o restante filme é enquadrado na dureza do realismo, típico de filmes britânicos. As paisagens são austeras, os personagens severamente humanos. Um pormenor interessante da filmagem foi o facto de boa parte das cenas de sedução de Scarlett Johansson (numa brilhante interpretação) serem reais. Glazer e a equipa montaram várias câmaras numa carrinha na qual Johansson circulava livremente pelas ruas da Escócia, numa curiosa inversão do modelo reality show. Com uma peruca negra, roupas trashy e lábios garridamente vermelhos consegue preservar o anonimato e sair em busca de “presas”. Com a devida autorização, algumas dessas filmagens foram incorporadas no filme, contribuindo para o todo realista-onírico que constrói a atmosfera do filme.


Este não é, de todo, um filme fácil. A narrativa, apesar de relativamente linear, serve um ambiente opressor, negro, desesperante. As cenas desenvolvem-se como no provérbio do gato e do rato, um predador inexoravelmente na busca da vítima. Uma destas em particular, que envolve um casal, o filho bebé, um cão e um surfista, é um dos momentos mais arrepiantes de todo o filme – julgo não ser para os de coração fraco. Contudo, esta não é uma história que se cinja ao mote da caça, antes pelo contrário. O título é a pista mais importante para o que o realizador e o argumentista nos querem revelar, uma temática mais universal, obviamente, o que se esconde por debaixo daquilo que revelamos para o mundo exterior e para os nossos pares. Nessa senda, a figura de Johansson é um personagem verdadeiramente trágico, ao descobrir que existe uma relação mais profunda com as suas vítimas que a de predador / presa. Ou melhor, que aqueles que “consome” têm alma e, assim, a distância de anos-luz que os separa encurta-se para milímetros. Essa redenção é a sua perdição, como em tantos outros personagens da mesma matriz. Um filme brilhante onde a frase “primeiro estranha-se e depois entranha-se” é mesmo aplicável.

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