Spartacus foi uma série de TV produzida pelo canal americano Starz. Repartida em quatro temporadas (uma delas
uma prequela), relata a história dos derradeiros anos do guerreiro/gladiador
Trácio, conhecido na História como tendo sido o mentor ideológico e prático de
uma das mais importantes rebeliões escravas ocorridas na Roma Antiga (entre 73
e 71 AC). A história deste marcante personagem do ponto de vista marcial e
filosófico já tinha tido, em 1960, uma versão cinematográfica realizada por Stanley
Kubrick e protagonizada por Kirk Douglas, mas nada do que se via
nesse filme poder-nos-ia preparar para a versão crua, sexualmente hiperbolizada
e ultraviolenta que passou no pequeno ecrã.
A estética da série de TV é sem dúvida uma das suas maiores
atrações, não só por representar, em ambientes
fortemente encenados, uma Roma idealizada, como também por oferecer-nos corpos
masculinos e femininos no seu apogeu físico e em situações que oscilam entre o
erotismo amplificado e as batalhas graficamente explosivas. Existe uma estética
marcada em Spartacus que, por sua vez, deve muito à versão
cinematográfica, realizada por Zach Snyder, da BD 300.
Neste filme as batalhas eram representadas como ballets belissimamente
coreografados, como longas sequências masculinizadas onde os guerreiros eram
super-homens, não só pelo físico tonificado mas também pela proeza bélica exibida.
Essa mesma estética procurava transpor para a tela a “filosofia” do autor da
BD, Frank Miller, que via os espartanos como seres superiores que
ultrapassaram uma das mais difíceis batalhas da história da nossa civilização
ocidental (versão, por sua vez, vendida por Heródoto, o pai da
História). Toda esta imagética é transportada para Spartacus, que mesmo
assim introduz ambientes mais hiperbolizados, tornando-se numa arrebatadora
experiência sensorial para adultos. Não há aqui pedido de desculpas na exibição
gráfica e destapada das situações e dos corpos, metafórica e explicitamente
falando. Os sentimentos são extremados, os diálogos grandiloquentes, shakespearianos
(o Shakespeare que me desculpe a liberdade), os homens e mulheres tão
depressa capazes de atos de nobreza divina como de crueldade infernal
(geralmente, do lado de Deus os escravos e do Diabo os Romanos, mas já falamos
mais disso).
No meio deste ataque aos sentidos existe uma história que faz com que
a série sobreviva para lá do explícito e exploratório. Existe um legado
filosófico e ideológico que permeia os eventos que ocorreram há mais de 2000
anos, algo que bate fundo nos nossos medos e anseios, na necessidade de sermos,
em última instância, mulheres e homens verdadeiramente livres. A apropriação da
vida de um ser humano por outro, a escravidão, foi uma das maiores aberrações
na história da humanidade e corrigida apenas recentemente. Antes de entrar pelo
lado da revolta, a série transmite em duas temporadas (uma delas a prequela) os
horrores da escravidão, horrores esses que obviamente passam pela exploração da
pessoa e do seu corpo, mas acima de tudo pela posse plena dos pensamentos, ações
e sangue. Os escravos eram menos que mobília. As linhas da sua vida eram
confundidas com as dos seus senhores e valiam nada frente aos ditames
momentâneos de alguns. Compreende-se, no espectáculo de entretenimento que
passa defronte dos nossos olhos, que existe justificação para aquele ato de
desespero, de suprema libertação. É verdadeiramente catártico e por isso
intemporal.
Ainda que não seja umas das mais literatas séries de TV feitas, não
deixou de exibir um elogiável sentido de equilíbrio, não só porque nos relatou um
momento histórico, ainda que com algumas liberdades poéticas, mas também porque
o seu cerne permaneceu imutável no meio do carnaval, do sangue e do sexo. E esse
cerne é a luta perene pela liberdade e pela individualidade que, em qualquer
momento da história, por mais que achemos estas conquistas inscritas em pedra,
são sempre postas em causa por poderes sabiamente instituídos. Esta mistura
sempre difícil entre entretenimento e mensagem é conseguida em Spartacus.
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