Nada do que vos disser
acerca de Anna Karénina será
novidade. O que eu escrever não será mais que um testamento do meu gosto. Será
falar do prazer que foi lê-lo e reconhecer que, sim, é um romance maior, da
primeira à última página. Melhores que eu já dele falaram copiosamente. Eu não
vou acrescentar nada de relevante.
Afirmar que este é
um dos maiores livros da Humanidade é algo que muitos já ouviram mas que reconhecem
ser pouco mais que uma frase que meia dúzia de conhecedores de Literatura repete.
Não conheço o suficiente para o debater de igual para igual, mas face à
quantidade de livros que já tive o prazer de ler, este é, sem dúvida, um dos mais fabulosos que me passou pelos olhos. Não sei se ainda se fazem
livros como este. Por exemplo, li há uns anos atrás Liberdade de Jonathan Franzen, autor estado-unidense que se diz
inspirado pelos trabalhos de russos como Tolstoi, e nada do que ele fez nesse
livro ou em Correções é, para mim,
tão bom quanto o é Anna Karénina
(gostei muito do Liberdade e quase
nada do Correções). Anna é
construído de forma soberba, definindo os personagens e acontecimentos
através de um oposto, de um outro personagem ou acontecimento que os
reflete. As histórias principais são duas (este é um livro
sistematicamente composto por dicotomias): a da famosa e trágica história de
amor entre a titular Anna Karénina e Vronsky; a outra, doce, entre Kitty e Levin, este, para mim, o grande herói do romance. Enquanto a
primeira segue, de uma forma muito particular, os trâmites da tragédia, a
segunda é, curiosamente, ao mesmo tempo idílica e realista.
Anna Karénina e Vronsky são a pedra de toque e o alvo
principal de Tolstoi, mas Kitty e Levin são aquilo a que ambiciona.
Ambas as histórias têm inícios problemáticos, mas a primeira é mais
voluptuosa e carnal que a segunda, esta mais romântica, carinhosa e alicerçada
na personalidade de Levin, um homem
do campo, latifundiário. Enquanto Levin
é um homem habituado ao duro trabalho da agricultura e pecuária, cujas virtudes
são fortemente enaltecidas pela prosa de Tolstoi, todos os restantes
personagens são animais da cidade, muitos deles parte da nobreza russa, que vive
acima das suas possibilidades e em constante serviço do hedonismo
(principalmente os homens). Este confronto entre o trabalho honesto e a busca
do prazer é um tema recorrente e, aliás, enfoque de uma das mais fantásticas
passagens do livro, envolvendo duas belíssimas epifanias de Levin: mesmo sendo o patrão decide
partilhar do trabalho físico dos seus empregados; nesse mesmo dia, conclui que Kitty é a mulher da sua vida, por quem
lutará sem medo da vergonha. Estes dois novelos são misturados de forma soberba
pela escrita de Tolstoi numa das mais belas sequências da Literatura (caso não
tenham ainda percebido, a minha história favorita de Anna Karénina não é a da titular).
Um aspeto
importante é também a insurgência de diferentes pontos de vista sobre
diferentes assuntos que preocupavam a época. Também a filosofia e crenças do
escritor são, subtilmente e por vezes não tão subtilmente, colocadas entre
textos e diálogos. Existem reflexões sobre os amores dos homens versus o amor
das mulheres, a diferença entre artista e apreciador de arte. Existe um
episódio com um cão que acho particularmente delicioso, tendo em conta o facto
de Tolstoi ter sido vegetariano e naturalista.
Poderia escrever
inúmeras palavras acerca deste livro mas, como já o disse em relação a tantas
outras coisas, o melhor não é ler sobre mas ler. E, já agora, nem se atrevam a
ver o filme mais recente que adapta o livro. Pouco ou nada tem a ver com a
superior prosa do autor. Aqui, declaradamente, o livro é muito, mas mesmo
muito, melhor que o filme.
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