Acho que Acho

As Flores do Mal de Hideo Okazaki e Kazuo Kamimura (Les Fleures du Mal pela editora francesa Le Lézard Noir, em dois volumes), é um livro difícil, mesmo com a censura que é feita a alguns momentos mais gráficos (em violência e pornografia). É a história de uma mulher belíssima, raptada por um influente magnata japonês e sujeita a todo o tipo de devassidão e tortura imagináveis e, principalmente, inimagináveis. Okazaki e Kamimura (este podem conhecer de obras como O Clube das Divorciadas, de que falei aqui e aqui), tecem uma obra que encontra-se sedimentada numa vertente artística risqué japonesa, da qual conhecemos uma outra obra, esta do Cinema, O Império dos Sentidos de Nagisa Ôshima.

Quer a BD, quer o filme, partem de um princípio muito similar, o de um homem mais velho, da alta nobreza japonesa, que usa uma mulher para relações sexuais extremas, mas, no caso do Mangá, de forma alguma consensuais. Rannosuke Hanayagi é o herdeiro de um império dedicado à arte floral, mas está longe de ser uma magnata magnânimo. É antes um assassino em série, com poder suficiente para apagar a morte de centenas de jovens à sua mão. Essas jovens são raptadas à sociedade civil e sujeitas à aleatoriedade dos devassos desejos do senhor. Sayuri é a belíssima jovem por quem, ao contrário do que lhe é costumeiro, Rannosuke se enamora. Contudo, desenganem-se se acham que ele trata a inocente Sayuri de forma muito diferente de outras mulher.es A obra irá, como é costume em Mangá, desenvolver-se num crescendo de capítulos de cerca de duas dezenas de páginas, até à explosão final. Não sem antes explorar a finura, fineza e frieza dos "trabalhos" de Hanayagi.

Ler este Flores do Mal é como vislumbrar um acidente de carro pintado por Bosch. A beleza do terrível assalta a leitura com a violência de um vento devastador. Somos arrastados para um mundo sem capacidade de redenção, que prende-nos numa espiral de desespero. Podem estas vidas coexistir com as nossas? Que seres humanos perdidos são estes? Sim, existe pornografia - não explícita e eu sei que não é bem essa a definição, mas terão de ler para perceber. Sim, existe violência extrema. É como se o realizador Nagisa Ôshima fizesse um filme a meias com Takeshi Miike, autor de obras como Audition, Ichi The Killer ou um infame episódio de Masters of Horror. Tudo explorado pelas palavras rápidas e desnudadas de Okazaki e pelo minimalismo estético de Kamimura. Nada é a mais e nada é a menos e somos surpreendidos (e ainda bem, digo eu) pela vertigem dos acontecimentos inusitados e arrepiantes. Depois de lerem percebem que Hannibal Lecter era um aprendiz.

Volto a dizer, e corro o risco de parecer um disco riscado, mas As Flores do Mal  não é um livro fácil (a coincidência com o título da obra de Baudelaire não é ocasional). Mas é um livro que recompensa por abordar temas intemporais como o classismo e o elitismo. Leiam ao vosso próprio risco.