Isto do streaming de séries de TV, do binge-watching, como agora lhe chamam, "ver compulsivamente", como em Portugal poderíamos antes dizer, não é novidade nenhuma - pelo menos para mim. Desde que, há sensivelmente 20 anos, comecei a ver Os Sopranos de David Chase da HBO, que os meus hábitos de ver TV mudaram radicalmente. Depois de ler uma crítica no Público de sublime elogio a essa série, escrita pelo infelizmente falecido Eduardo Prado Coelho, tive de comprar os DVDs (a um site espanhol, vejam lá bem). Não descansei até acabar as ainda poucas temporadas que tinham saído à altura, e esperar, ano após ano, pela impressionante conclusão. Mas o DVD depressa foi substituído por formas de proto-streaming (vocês acham que a Netflix baseou-se em que modelo de negócio? Agradeçam ao senhor que criou o Napster), e passei a ser um compulsivo consumidor de séries de TV. Já não havia paciência pela espera da hora marcada no canal generalista de televisão. Via-se à hora que se queria, onde se queria. E assim pude ver obras como a minha série favorita, The Wire, pude acompanhar o 24, Breaking Bad, etc. Hoje? Hoje estamos mais confortáveis, porque temos a HBO em streaming, a Netflix, a Amazon, etc. Tudo isto para dar-vos uma introdução a esta nova rubrica com que abro 2020, dedicada a séries de TV.
E, neste início dos roaring new twenties, a primeira série que vi foi a (espero) primeira temporada de Dracula de Steven Moffat e Mark Gatiss (os mesmos autores do Sherlock com Benedict Cumberbatch), produzida pela BBC One e exibida em Portugal na Netflix.
Dracula é uma deliciosa mistura de kitsch e sofisticação, entrelaçado com diálogos cheios de poder de citação, personalidades cativantes de terror e de força de carácter, um elogio cuidado à personagem criada por Bram Stoker, sem esquecer que vivemos no século XXI. A gestão que os argumentistas fazem da história é um dos trunfos desta série, aos poucos fornecendo pistas e mistérios, entregues com diálogos a meio caminho entre o eloquente e o pop foleiro, tão típico dos Filmes Série B feitos com a personagem. Aliás, o actor Claes Bang, que conhecemos do filme O Quadrado, faz lembrar, mais do que superficialmente, o mítico Bela Lugosi e a sua interpretação do famoso vampiro. A postura, a figura, os trocadilhos manhosos ("I don’t drink ...wine”; “The people around here have no flavour”), o delicioso cabelo negro-corvo, e até alguma da vestimenta, convergem para esse imaginário, elogiando-o. Mas desenganem-se se acham tratar-se de uma homenagem redundante, aludindo quer a essa imagética, quer à do filme de Francis Ford Coppola (também existem essas referências). Depois de "despachar" essas obrigatórias alusões cinematográficas, como que estipulado o código genético, depressa afirma-se como um objecto único na mitologia, um reflexo das preocupações e estéticas desta terceira década do século XXI. Muito à semelhança do que os autores já haviam feito com o Sherlock de Sir Arthur Conan Doyle.
É-me complicado entrar nesses temas, sem percorrer, perigosamente, pelos caminhos "estraga-prazeres", mais conhecidos pelos spoilers. A série é composta por apenas três episódios de uma hora e meia cada (similar a Sherlock), aproveitando ao máximo cada um desses pequenos filmes para explorar uma faceta da já referida mitologia, acrescentando e subvertendo os preconceitos e conceitos que associamos ao Drácula. Existem profundas alterações que não serão do gosto de todos, mas que, no que a mim diz respeito, porque alicerçadas em questões filosóficas e morais e menos em fantasia pura e dura, acabam por funcionar dentro de uma perspectiva humana. É uma reflexão sobre a imortalidade, sobre a mortalidade, sobre a modernidade, que usa o que poderia ser apenas um exercício estético e transforma-o em algo mais verdadeiro. A fantasia perde sempre alguma da alma quando é apenas uma exploração infantil de world-building e de personalidades com estilos e origens exóticas.
Outra das interessantes personagens desta versão é a freira da actriz Dolly Wells, que funciona como contraponto e como confronto à força da natureza puramente hedonista que é o Dracula de Claes Bang. Ele é puro Id e ela Ego e Super-Ego. Ele é um tempo arbitrário, selvagem e primitivo, ela o mundo moderno de descrença, de cinismo e de necessidade de prova. Uma das suas deliciosas primeiras frases revela um tema actual e profundo: “Like many women my age I am trapped in a loveless marriage, maintaining appearances for the sake of a roof over my head,”. Ela encontra-se em plena crise de fé, mas depressa percebemos o porquê de perseguir o genocida Conde Dracula: a necessidade de renovação e de cedência a herança familiar (e já disse demais).
Uma série inteligentemente divertida e sofisticada que não desmerece Bram Stoker nem os seus herdeiros. Vejam.
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