Dolor y Glória (Dor e Glória) de Pedro Almodóvar

Existem, em Portugal, alguns realizadores que são um acontecimento. O grupo é pequeno e, assim de repente, saltam-me à memória nomes como Quentin Tarantino, Woody Allen e Pedro Almodóvar. São daqueles que muitos insistem em acorrer às salas para os ver, em enchê-las e em descobrir as novas delícias que decidiram conjugar. E raramente fazem filmes verdadeiramente maus (alguma vez o fizeram?). Está no seu código genético. Um filme menos conseguido destes está alguns níveis acima do melhor de outros artífices da sétima arte - obviamente que exagero, para efeitos do vosso prazer de leitura e do meu na escrita. Mas, e aqui está um enorme mas, este Dor e Glória é um acontecimento em mérito próprio. É um filme superior, gigantesco e um dos melhores do realizador espanhol desde há algum tempo. 


António Banderas tem escolhido voltar às mãos do realizador que o revelou ao mundo. Aqui regressa como um (também) realizador de cinema, acometido por várias doenças, físicas e psicológicas, que o forçaram a afastar-se da arte que era o seu trabalho e o seu maior prazer na vida. Por causa da restauração de um dos seus mais emblemáticos filmes, é forçado a reviver o passado, não apenas aquele em que fez essa obra, há 30 anos, mas também o da sua infância, enquanto se descobria como pessoa. Dor e Glória intervala entre o presente, o das agruras existenciais da personagem principal, e o passado, de uma Espanha pobre e rural. Nesses tempos idos, acompanhamos o jovem Salvador, a sua mãe (interpretada por Penélope Cruz) e a lenta descoberta do caminho que o levará ao ponto onde se encontra hoje. No presente, é confrontado com velhos actores com quem trabalhou, com velhos amores e com as maleitas que afectam a sua existência e o seu conforto.

Fortemente autobiográfico, este é um filme de assumida maturidade. Foi no acumular dos anos que uma obra destas pôde ser feita, quando os véus da inexperiência já foram esfarrapados, para o bem e para o mal. Cada frase e cada ruga são fruto da eloquência da idade e da fome da faca do tempo. Não é tanto uma questão de amargura, mas de consciência das falhas e das vitórias. De percorrer cada segundo da nossa vida e tirar dele uma lição e uma pequena verdade que ensina o presente. É também a consciência de que a vida não é somatório de propósitos, mas antes um produto do acaso. Aliás, a sorte está particular e sublinhadamente presente neste Dor e Glória. Quer nas escolhas do passado, quer nas oportunidades do presente. E há uma calma e serena aceitação das cartas que nos são dadas pela vida, por mais que sejam viciadas e pouco agradáveis. É quase como uma anti-revolta, uma calada aceitação do real, sem tragédia, apenas maturidade.

Este Dor e Glória transpira da estética de Almodóvar, da paleta de cores garridas, mas controlada pela sabedoria e serenidade da idade. Onde antes podia haver grito, agora existe sussurro. E o realizador deixa a riqueza das personagens que cria falar mais alto do que todas as outras vozes (o que, se pensarem bem, é o que deveria ser e não uma ironia meta-textual). Elas são gordas de pormenores, implícitos ou explícitos, declarados ou revelados. E, como disse um amigo, existe nelas toda a Espanha - e eu acrescento, a Ibéria.

Volto a dizer, se Almodóvar é um acontecimento, este é um dos seus mais sublimes encantamentos. Obrigatório ver.

PS - Que delícia foi ouvir a voz de Rosalía logo nos primeiros minutos deste filme. 

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