O que vou lendo! - Demon de Garth Ennis e John McGrea vol. 1 e 2



Muitas vezes lemos um determinado autor, gostamos dele e a curiosidade é grande para investigar obras anteriores, se não for novo nessas lides. Tudo para reproduzir o prazer através de um segredo que, até aquele momento, era escondido de nós. Não foi exactamente o que aconteceu com estes dois livros mas o sentimento é bastante parecido.  Isso porque estamos a falar de Garth Ennis, escritor, e John McGrea, desenhista, que, há duas décadas, deram-me uma das minhas histórias favoritas: Hitman. Aliás, é nos capítulos coleccionados nestas duas compilações (Hell's Hitman e Longest Day), que esse personagem criado por ambos aparece pela primeira vez. Contudo, a série Demon não é sobre Tommy Monaghan mas antes um capítulo na trágica história de Jason Blood e do demónio que é o seu castigo há mais de 10 séculos, Etrigan. Blood e Etrigan não ocupam o mesmo espaço mas trocam de lugar quando a necessidade a isso o obriga. A troca é realizada através de um poema, um cântico de evocação, que arrasta o demónio do fundo pestilento do Inferno e conjura-o em toda a sua eloquente, majestosa e terrível forma para infligir terror ao mundo. Criado por Jack Kirby na década de 70, é um dos filhos deste autor com a DC Comics e um daqueles deliciosos conceitos que pairam na periferia do catálogo da editora e no qual, de vez em quando, um autor coloca as mãos, por iniciativa própria ou porque a isso é convencido.

O Demon de Jack Kirby já tinha sofrido uma espécie de renascimento quando o também famoso Alan Moore o incluiu na saga que apresentou o autor aos EUA, Swamp Thing. Graças ao talento do escritor, muitos personagens sobrenaturais da DC Comics foram vistos de um prisma diferente, atemorizante e sobrenatural, e ganharam fãs que provavelmente não tinham. Dessa run nasceu uma nova DC, mais voltada para o estranho, para o místico, e com a recém-adquirida sensibilidade nasceria a Vertigo de Karen Berger e o Sandman de Neil Gaiman, apenas para citar os mais relevantes. Garth Ennis acabaria por produzir para a Vertigo um dos maiores êxitos da imprint, Preacher, mas não antes de provar-se com este Demon, onde o seu muito especial ponto de vista nota-se já de forma sublinhada.

O escritor escocês é conhecido por uma verborreia colorida e viva. Os seus personagens são geralmente sádicos ou sociapatas em diferentes estados de gravidade da doença, revelados não só pelos actos mas também pela tal capacidade de Ennis em produzir diálogos eloquentes e fluídos, não recomendáveis a crianças.  O escocês tem uma talhada apetência para o universo demoníaco trazido das profundezas infernais e para a tragédia patética que é a dupla Jason Blood/Etrigan. As situações que cria para ambos estão muito longe de qualquer rótulo super-heroístico que lhe quiséssemos colar. São desconfortáveis e mais perto de medo primordial do que da esperança que alguns super-heróis deixam transparecer. Disso são prova o cenário destas histórias, o recanto mais sombrio do universo DC, Gotham City, a cidade do Batman, mas também o envolvimento de Demon noutras sagas da tapeçaria da editora: Ennis agarra em enredos da saga de Alan Moore para Swamp Thing e também num particular desenvolvimento no Sandman de Neil Gaiman. Para os fãs e conhecedores, o facto desta revista envolver-se nos labirintos destas histórias míticas é, já de si, motivo suficiente para despertar a curiosidade, mas Demon de Garth Ennis e John McGrea é mais que isso. É a revelação de dois autores a começar uma parceria que produziria dois dos mais interessantes frutos da DC Comics da década de 90: este mesmo Demon e Hitman. Os enredos destas duas compilações, que coleccionam todo o trabalho dos autores no personagem, envolvem a alma negra de Gotham City, Nazis renascidos à conquista do IV Reich, o nascimento dos filhos de Jason Blood e Etrigan, as conspirações deste último para agrilhoar o primeiro e a tentativa de conquista do Inferno pelos exércitos do Paraíso - sim, leram bem, não me enganei.

Demon é prelúdio e prova do talento de Garth Ennis e John McGrea, da perenidade das criações de Jack Kirby, da diversidade do catálogo da DC Comics e da qualidade das criações na década de 90 para a editora. Uma pérola.

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