Viajar é o mundo - Love and Friendship e Uma Pastelaria em Tóquio



Viajar pode acontecer dentro da nossa cultura ou pode ser sair. Ficar é bom. Sair é (para mim) melhor.  Sair é fazer com que cada dia pareça maior, mais recheado. A monotonia passa a ser de apenas minutos ou de horas. Se escolhemos percorrer estrada ou ferrovia, se achamos que saltar de local em local é o nosso modo de viajar então é impossível sentir-mo-nos numa rotina. Mesmo que viajemos de forma serena, sem aventuras radicais, o simples acto de abrir os olhos, de provar sabores ou cheirar odores é suficiente para que estejamos mais longe da nossa zona de conforto. O tempo parece correr mais depressa à medida que envelhecemos. Li que isto deve-se ao facto de o nosso cérebro habituar-se à monotonia e distorcer as horas para que pareçam minutos. Nunca tiveram a sensação de que a semana, o mês ou o ano passaram a correr, cada momento igual ao outro? Culpem o casamento da nossa cabeça com o repetitivo dos dias. Viajar é um antídoto.

Quando bate a saudade desta sensação, ver um filme um pouco diferente daqueles a que estamos mais habituados pode ser um equivalente genérico. Estes dois, ambos em exibição, podem ser considerados uma pequena/grande viagem. Love & Friendship remonta ao século dos livros de Jane Austen (adapta um conto pouco conhecido da autora) e às desventuras de uma mulher muito manipuladora interpretada de forma brilhante, sedutora e humorística por Kate Beckinsale. Eu disse manipuladora? Prefiro sobrevivente. Sem recursos financeiros, usa de todas as artimanhas no seu arsenal para conquistar o que espera alcançar. Usa a beleza, sim, mas principalmente uma mente afiada ao gume de uma espada. Os movimentos são certeiros ao ponto de até o acaso funcionar a seu favor. 

Whit Stillman, o realizador, volta a trabalhar com a parelha de Kate e Chloe Sevigny (fizeram dupla na década de 90 em Last Days of Disco) para um filme cheio de carisma e de humor tipicamente britânico. De destacar ainda o trabalho de Tom Bennett e a sua interpretação de um nobre completamente deslocado da realidade, desenhado pelo actor de forma tão satírica que não temos a certeza se ele é mau actor ou apenas brilhante (claro que é a segunda hipótese).

Uma Pastelaria em Tóquio (An, no original) viaja para mais longe. Certo que passa-se nos nossos dias mas desloca-se para o outro lado do mundo, para um país que muito gosto e admiro, o Japão. Um homem é obrigado a cuidar de um negócio de venda de pastéis de feijão doce nos subúrbios de Tóquio.  O negócio não corre bem principalmente porque nenhum amor é-lhe dedicado. Eis que aparece uma senhora idosa, uma soberba cozinheira. Após muita insistência consegue emprego e juntos irão conseguir o inevitável, tornar a pequena pastelaria num sucesso. Este filme está, contudo, muito longe de outros que falam de histórias de sucesso de negócios, de empresas que cresceram para transformarem-se em impérios internacionais. Se é alguma coisa é o oposto disso. Esta é a história (simples) de como abrandar o tempo e querer que nele construamos bases sólidas, conhecimento duradouro. Tudo o que é bom demora. Tudo o que fica dá trabalho. Em todas as artérias deste filme, em todos os poros pelos quais respira há um Japão que (se calhar?) está a desaparecer, o dos rituais, o do tempo, o do apreciar da mudança da estações (o filme passa-se num ano, entre dois florires de cerejeiras). 

É também sobre a passagem de testemunho entre gerações, sobre a importância do conhecimento e do saber. Naomi Kawase, realizadora que inaugurou há 20 anos um movimento do género feminino na cinematografia nipónica (uma sociedade particularmente machista - não, esse aspecto não gosto), faz-me lembrar o trabalho de Jiro Taniguchi, actor de BD que adoro.  Há espaço para os idosos e para apreciar a mudança de folhas numa cerejeira. Há espaço para cheirar os odores da Primavera enquanto transformam-se em de Verão e depois de Outono e novamente nos de Primavera. Há tempo para construir lentamente.

Dois filmes-viagem soberbos.

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