Crónica Angoulême 2016.


Não sei porque demorei tantos anos a ir ao Festival Internacional de Banda Desenhada de Angoulême (FIBD). A princípio, até poderia justificar com a idade, com a menor disponibilidade mas, com o passar do tempo, nenhuma justificação parecia fazer sentido. No ano passado, na 42.ª edição deste Festival, fui pela primeira vez. Este ano de 2016 e na 43.ª edição, foi a segunda.

Todos os que já tiveram o prazer de ir sabem não tratar-se de uma versão "cocktail" de cultura pop. Isto é uma assumida reunião sobre BD, só BD e nada mais que BD - não que haja nada de mal com reuniões como a Comic Con de Portugal, muito pelo contrário, eu gosto das duas. Respira-se BD em todos os lados, desde os mais novos aos mais velhos, em todos os géneros, em todos os estilos, em todas as classes socioeconómicas. A França tem várias virtudes e uma delas é este amor incondicional e transversal e uma arte que eu amo (não sei se já desconfiavam). Na última manhã, enquanto descansava, ao meu lado estava um casal de adolescentes, pernas em posição de meditação, ambos a ler a BD premiada com o prémio do Juri, Carbet de Santé Foireuse de Pozla. Mais ao lado, um outro casal, nos seus trinta, ela grávida e ele meloso de volta dela, ambos avidamente a ler BD, ao ponto de a cadeia de TV residente dedicar alguns minutos ao amor que ambos dedicam à Arte Suprema. À volta, multidões deslocam-se de uma ponta à outra do pavilhão (mas também em todos os outros que polvilham a cidade), comprando toneladas de livros, esperando horas por uma dedicatória (dédicace em francês), folheando os volumes das suas BD favoritas, todos em comunhão plena. É uma vila inteira entregue à celebração da 9.ª Arte, no maior festival que lhe é dedicado na Europa.

Junto com a obrigatória celebração comercial (compras, quero eu dizer), com a comunhão com os muitos autores que para aqui se deslocam, existem inúmeras exposições e eventos de diversa natureza, espalhados por Angoulême.  Este ano, pelo facto de celebrar os seus 70 anos de existência, ocorreu uma muito concorrida mostra do herói Lucky Luke, o cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra e que os portugueses tão bem conhecem. Mostraram-se pranchas originais de toda a sua história de sete décadas, com as evoluções estilísticas, as influências de Morris, a descrição dos vários personagens, etc. Também no âmbito dos autores e personagens mitológicos, este ano ocorreu uma exposição sobre a obra e vida de Hugo Pratt, que nas nossas terras lusas tanto idolatramos por causa do seu Corto Maltese. Este era a celebração da vida aventureira, filosófica, poética e bandadesenhista deste homem que marcou inúmeras gerações (em jeito de honestidade e confissão, tenho que dizer que não sou um deles. Apenas descobri Corto depois da adolescência). Menos conhecidos dos portugueses houve a exposição sobre a muito interessante BD autobiográfica de Pauline Aubry, Les Mutants, outra sobre o fenómeno Last Man, uma manga francesa com bastante sucesso, e, para acabar aquelas que achei mais interessantes, uma sobre Li Chi Tak, artista de Hong Kong, continuando a descoberta que Angoulême parece dedicar a autores chineses.

Um dos pontos altos da edição deste ano foi a merecida homenagem a Katsuhiro Otomo, o conhecido autor do seminal Akira. No ano passado, foi o laureado com o Grand Prix de Angoulême, que todos os anos premeia um grande autor de BD (este ano a honra coube a Hermann). Em virtude deste prémio, Otomo foi alvo de uma exposição de homenagem, com a mostra de trabalhos de vários outros desenhistas de BD, vindos de todos os quadrantes, a maior parte aludindo à sua mais conhecida obra. Mas os festivaleiros foram, por sua vez, também eles premiados. Otomo fez uma muito rara aparição para falar da sua carreia e da sua obra, naquele que revelou-se como um dos grandes momentos desta 43.ª Edição e a que tive o prazer de assistir - contudo, pela riqueza de conteúdo, vou dedicar uma crónica especial a esta aparição. 

Depois de tantas compras, exposições e eventos, ainda tem-se o prazer de desfrutar da vida desta pequena vila, com idas a gulosos restaurantes ou com uma saída para copos onde pode-se, sem querer, cruzar com autores que se admira - no meu caso, tive o prazer de trocar (muito) pequenas palavras com Riad Sattouf, autor do excelente Árabe do Futuro. É isto uma ida ao FIBD e, se tudo correr bem, para o ano lá estarei outra vez, não só para continuar a comprar toneladas de livros, como para poder desfrutar de um ambiente  sem igual para nós que gostamos de BD. Ainda por cima, nos últimos minutos tive o prazer de conhecer um português que por lá andava e que garantiu para o ano lá estar outra vez - os copos irão saber de forma diferente. 

Deixo-vos com esta citação de Hugo Pratt, colocada na sua exposição e que só pode aquecer o coração de todos aqueles que amam a 9.ª Arte - ou que gostam ou que apreciam ou que conhecem.

(voltem nos próximos dias para fotos e para a crónica sobre a conferência de Katsuhiro Otomo)


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